domingo, 4 de maio de 2014

[ Discursivas CACD ] Direito 2011: ONU e o Constitucionalismo Internacional




























Guia de Estudos IRB 2012

Prova de 2011 - Questão 1

"Alguns doutrinadores consideram o preâmbulo do tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas (Carta da ONU) como a expressão do constitucionalismo internacional. 

Alegam, em defesa dessa tese, que, no texto, há referência à composição da comunidade internacional (povos e governos), ao seu passado (escória da guerra), às suas crenças (direitos humanos fundamentais), ao seu projeto de futuro (estabelecimento da justiça, progresso econômico e social e autodeterminação dos povos). 

Outros argumentam que a possibilidade de a Carta da ONU produzir efeitos sobre os Estados não membros da organização - "A Organização fará que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais" (art.2, inc.6) - bem como sobre obrigações decorrentes de outros tratados - "No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta" (art.103) - representa exceção a dois princípios fundamentais do direito das gentes (res inter alios acta e pacta sunt servanda), o que indicaria, segundo esses doutrinadores, a existência de um  direito superior representado pelo instrumento constitutivo. 

Há, por fim, os que afastam essas perspectivas ao argumento da inexistência da Hierarquia entre os órgãos das Nações Unidas na interpretação da Carta, assim como ao da ausência de freios e contrapesos entre esses mesmos órgãos.

Posicione-se, de maneira fundamentada, em relação a esse debate."

João Guilherme Fernandes Maranhão

"A discussão sobre a hierarquia de fontes normativas e a preeminência de certos órgãos das Nações Unidas é matéria controversa na doutrina de Direito Internacional Público. 

A análise jurídica de tal questão, pode, no entanto, pautar-se pelo atual estágio do Direito Internacional geral e pelas disposições da Carta da ONU, visto que o surgimento das Nações Unidas inaugura uma renovada fase do Direito Internacional.

Inicialmente, há que se observar que, em regra, não há hierarquia entre fontes do Direito Internacional Público. Destarte, um costume superveniente poderia, por exemplo, derrogar ou ab-rogar disposições de um tratado, sendo o raciocínio inverso plausível de igual maneira. 

Não obstante, o Direito Internacional contemporâneo passa por um processo de "constitucionalização", tendo em vista a proliferação de regimes normativos internacionais contendo conjuntos de normas secundárias, a exemplo de regras de julgamento, que estabelecem sistemas específicos de solução pacífica de controvérsia com decisões obrigatórias. 

Considere-se ainda a existência de normas de Direito Internacional geral imperativas, chamadas de "jus cogens" (art. 53 da Convenção de Viena sore o Direito dos Tratados ), como o direito à vida e à existência digna. Tais normas não admitem derrogação, a não ser por outra norma "jus cogens".    

No que tange à prescrição do artigo 103 da Carta da ONU, deve-se observar que há, de fato, prevalência das obrigações decorrentes da Carta em relação às obrigações estatuídas por outros acordos. 

Nesse contexto, a ONU possui legitimidade suficiente para que assim se entenda a questão de hierarquia das fontes: hoje, 192 Estados são membros da ONU, a ampla maioria da sociedade dos Estados. Com isso, a força normativa do artigo 103 da Carta decorre da própria manifestação da vontade da sociedade dos Estados. 

Caso um ente estatal que não seja membro da ONU envolva-se em questão atinente à paz e à segurança mundial, de igual maneira, estaria ele obrigado pelas disposições da Carta da ONU, sendo aqui necessária detida reflexão. 

De início, poder-se-ia alegar que um Estado não membro da ONU está desobrigado em relação ao disposto no artigo 2, inc. 6, da Carta da ONU, haja vista a necessidade de respeito ao princípio da não intervenção, corolário da soberania, também previsto no art.2 da Carta da ONU. 

Não obstante, como observa Luigi Ferrajoli, em A Soberania no Mundo Moderno, não subsiste mais o conceito de soberania absoluta. Esta se encontra limitada internamente pela noção de Estado de Direito, que impõe a necessidade de respeito aos direitos fundamentais. 

No âmbito externo, a soberania é limitada pelo compromisso com o binômio direito-dever: direito de agir de forma independente no cenário internacional, sempre observado o compromisso com a paz e os direitos humanos. Não há, portanto, domínio reservado absoluto titularizado pelos Estados.

Este foi o entendimento da Assembléia Geral da ONU ao editar a Resolução 60/01, de 2005, adotando a doutrina de responsabilidade de proteger. Permanecem rígidas a legalidade e a legitimidade da atuação da ONU, em especial do Conselho de Segurança, em matéria de paz e segurança, podendo envolver o respeito aos direitos humanos, mesmo em relação a Estados não membros da ONU. 

Por fim, há que se analisar o argumento de que inexiste hierarquia entre os órgãos da ONU e o de que não há sistema de freios e contrapesos entre os mesmos.

Tais argumentos são parcialmente corretos. A Corte Internacional de Justiça, por exemplo, não dispõe de poderes executórios, ficando na dependência de eventual atuação do Conselho de Segurança, conforme o disposto no artigo 94 da Carta da ONU. 

De qualquer maneira, não resta dúvida de que as resoluções do CSNU e as decisões da CIJ, mesmo as interlocutórias, são obrigatórias, o que se depreende dos julgados no caso Lockerbie e do acórdão da CIJ sobre a questão do mérito do caso La Grand, de 2001. 

Fica claro, assim, que, no âmbito do Direito Internacional, não há somente relações de coordenação, havendo, em dadas circunstâncias, relações de subordinação. 

Tendo em vista os argumentos expendidos, pode-se afirmar que a defesa de um constitucionalismo internacional em formação possui bases de sustentação. 

Com efeito, a idéia de que a vontade de cada Estado em particular é soberana e absoluta depara-se com vários constrangimentos, tais como o dever de respeitar os direitos humanos e de buscar a promoção da paz e da estabilidade internacional, o que pode ser ainda considerado no âmbito normativo do "jus cogens". 

Ademais, a noção de soberania absoluta não mais se sustenta na doutrina e na prática internacional. nesse contexto, as prescrições da Carta da ONU assumem especial caráter de legalidade e de legitimidade, dado o amplo apoio da comunidade internacional a essa organização internacional, guardiã da indivisibilidade da paz e dos direitos humanos."
     
fonte: Guia de estudos IRB para o CACD - edição 2012               

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