sábado, 20 de julho de 2019

Tempos difíceis no Itamaraty



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Um conto de dois embaixadores

A nomeação de Eduardo Bolsonaro equivaleria a transferir as chaves da embaixada brasileira ao próprio Trump


Demétrio Magnoli
Folha de SP - 20 julho 2019

Escrevi, para o Itamaraty, décadas atrás, um manual de Relações Internacionais destinado ao exame de ingresso na carreira diplomática.

O primeiro capítulo aborda as origens da diplomacia e as funções do dimplamata. Se fosse reescrevê-lo, hoje, a qual certamente não serei convidado, eu organizaria o texto em torno de Kim Darroch e Eduardo Bolsonaro. 

O contraste entre as duas figuras esclarece a cisão conceitual que inaugurou a diplomacia contemporânea. Já a queda do primeiro e a ascensão do segundo iluminam o impacto do populsimo sobre os corpos diplomáticos. 

"O Estado sou eu" - nas antigas monarquias absolutas, o diplomata era um representante pessoal do soberano. Nessa condição, sua única qualificação indispensável era a fidelidade ao soberano. O círculo familiar do rei e a corte funcionavam como instâncias privilegiadas de recrutamento. O enviado era uma ponte entre duas cortes. Por isso, para sua escolha, pesavam positivamente eventuais relações de amizade estabelecidas por ele com os artesãos estrangeiros. 

A indicação de Eduardo Bolsonaro obedece ao figurino do Antigo Regime. Candidamente, seu pai e eel mesmo explicaram  que, na desolada planície de seu currículo, mais que o hambúrguer, destaca-se a amizade recente travada com o clã familiar de Donald Trump. 

Darroch simboliza o oposto disso: representa uma nação, não um soberano. O embaixador britânico nos EUA, diplomata profissional culto e experiente, serviu a governos trabalhistas e conservadores, ocupando inúmeros cargos de alta responsabilidade. Paradoxalmente, na fonte do escândalo que provocou sua renúncia encontram-se os sinais distintivos da diplomacia do Estado-Nação. 

Darroch foi atingido por três raios sucessivos: Um: o vazamento de mensagens sigilosas que enviou ao seu governo com avaliações negativas sobre a Casa Branca de Trump e a política externa americana. 

Dois: a reação furiosa de Trump, vetando contatos de seu governo com o embaixador. Três: o desamparo a que foi relegado por Boris Johnson, candidado favorito à chefia do governo britânico. 

As mensagens vazadas classificam o governo Trump como "singularmente disfuncional" e a política dos EUA para o Irã como "incoerente e caótica". 

Uma das funções do diplomata é conduzir atividades de inteligência, oferecendo a seu governo diagnósticos sobre o país estrangeiro. Darroch apenas cumpria o dever de transmitir a Londres suas apreciações políticas, certas ou erradas. Foi, porém, colhido pelo vendaval do populismo. 

Trump extrapolou os limites diplomáticos normais das relações entre aliados, aproveitando-se do vazamento para humilhar os britânicos e ganhar aplausos de sua base eleitoral. Johnson, por sua vez, preferiu lambuzar-se em elogios à Trump, colocando suas convicções ideológicas acima da obrigação de proteger a diplomacia de seu país. 

Darroch foi traído pelos poderosos de uma nação à deriva, ferida pelo plebiscito do brexit, que já não sabe separar o interesse nacional das conveniências da ala reacionária do Partido Conservador. 

A tragédia brasileira é, sob esse aspecto, um tanto parecida com a britânica. Uma prova disso emerge na indicação de Eduardo para a embaixada em Washington, posto estratégico ocupado originalmente por Joaquim Nabuco. 

O filho 03 jamais enviaria avaliações críticas como fez Darroch, pois não é capaz de distinguir o interesse nacional brasileiro dos interesses dos EUA - e nem os interesses legítimos americanos das conveniências ideológicas de Trump ou Steve Bannon. 

A sua nomeação, mais que um ultraje ao pobre Itamaraty, equivaleria a transferir as chaves da embaixada ao próprio Trump. 

A palavra final cabe ao Senado brasileiro. Otimista, acalento a esperança de que os senadores decidam declarar o Brasil um Estado-Nação, não uma monarquia absoluta. 

Demétrio Magnoli, é sociólogo, autor de "Uma gota de sangue: uma história do pensamento racial". É doutor em geografia humana pela USP e autor de manual de Geografia para preparação ao CACD pela FUNAG. 

fonte: Folha de SP  
        


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