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sábado, 18 de abril de 2015

[ Book Review ] O Povo Brasileiro

O Povo Brasileiro foi o último livro escrito pelo  antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, antes de sua morte em 1997. 
Lançado em 1995, a obra aborda a história da formação do povo brasileiro, tratando das matrizes culturais e dos mecanismos de formação étnica e cultural do povo brasileiro.
Em O Povo Brasileiro, Darcy utiliza opiniões e impressões formadas pela sua própria experiência da vida. 
No livro são apresentadas as formas através das quais a empresa "Brasil" moldou as zonas de habitação humana no território nacional e sua influência na miscigenação das 3 matrizes básicas formadoras do brasileiro.
O Povo Brasileiro foi escrito em Maricá, cidade do litoral do Rio de Janeiro, para onde Darcy Ribeiro fugiu abandonando o hospital em que estava internado e, segundo suas próprias palavras no prefácio do livro, "na iminência de morrer sem concluí‐lo", tendo sido esta obra o seu maior desafio.
Darcy Ribeiro
Darcy foi antropólogoescritor e político brasileiro, conhecido por seus estudos e suas obras sobre os índios e a educação no Brasil. Nasceu em 1922 e faleceu em 1997. 
Formou-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo em 1946 e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia.
Foi um dos fundadores da Universidade de Brasília, no início dos anos 1960. 
Darcy foi ministro da Educação durante  Governo do presidente João Goulart entre 1962 e 1963 e chefe da Casa Civil entre 1963 e 1964). 
Durante a ditadura militar brasileira teve seus direito políticos cassados e foi obrigado a se exilar, vivendo durante alguns anos no Uruguai. 
Foi vice-governador do estado do Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola entre 1983 e 1987 e senador, também pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte em 1997. 
Darcy escreveu escreveu várias trabalhos sobre Antropologia, Etnologia e Educação. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas, como Inglês, Alemão, Espanhol, Francês, Italiano, Hebraico, Húngaro e Tcheco. 
Escreveu também alguns romances e ensaios e figura entre os mais maiores intelectuais brasileiros.  
O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil
“Por que o Brasil ainda não deu certo?” 
Esta é a questão que motiva a obra de Darcy Ribeiro (2002), dedicada a compreender o Brasil e os brasileiros – sua gestação como povo e seu lugar específico na história humana.
Ribeiro, no quadro de sua teoria da história. 
Darcy cunha dois conceitos com os quais trabalhará ao longo de toda sua obra: a) “povo novo” e b) “transfiguração étnica”. 
O primeiro diria respeito ao resultado da confluência das três matrizes raciais – portuguesa, negra e indígena – que deram origem ao brasileiro e à sua especificidade:

“Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um “povo novo” (Ribeiro, 1970) num novo modelo de estruturação societária. 
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos. 
Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. “Povo novo”, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. 
Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros” (Ribeiro, 1970: 19)

O caráter de novidade, contudo, do povo brasileiro, carregaria consigo a outra face da mesma moeda – um povo que é simultaneamente “novo” e “velho”:

“Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (ibidem, p. 20).
Já o conceito de “transfiguração étnica” diria respeito ao processo através do qual os povos surgem, se transformam ou morrem.
Ribeiro aplica tais termos à análise da realidade histórica brasileira, estruturando seu estudo em torno de cinco eixos: 
I) “O Novo Mundo”, que situa a formação do Brasil dentro do processo de expansão dos “impérios mercantis salvacionistas” europeus; 
II) “Gestação Étnica”, que mapeia os processos responsáveis pelo surgimento da etnia brasileira a partir de suas três matrizes formadoras; 
III) “Processo Sociocultural”, que identifica as forças responsáveis pela diversificação de nossa matriz étnica originária em diversos “modos rústicos de ser” dos brasileiros; 
IV) “Os Brasis na história”, dedicado à identificação e descrição destes modos de ser; 
V) “O Destino Nacional”, que analisa o tipo de estratificação social que advém de nosso processo de formação, assim como suas consequências em termos de tensões dissociativas de caráter traumático.

I) O Novo Mundo
Ribeiro situa a expansão ultramarina portuguesa dentro do amplo “processo civilizatório” que deu origem a dois Estados nacionais precocemente unificados: Portugal e Espanha. Impulsionados pela força de suas revoluções tecnológica, mercantil e política, tais nações se projetam, a partir da Península Ibérica, em direção às Américas, África e Ásia, motivados por uma ideologia salvacionista que ambicionava unificar todos os povos pagãos sob a égide de um império mundial católico-romano. 
Ao chegar ao Brasil, os portugueses se defrontam com centenas de tribos do tronco tupi que ocupavam o litoral. É chegada a hora do “enfrentamento dos mundos” – batalha que, nas palavras de Ribeiro, foi francamente desfavorável aos índios:

“Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava suas desumanização como bestas de carga. 
Nesse conflito de vida ou morte, os índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias, armas e astúcias. Entretanto, cada tribo, lutando por si, desajudada pelas demais – exceto em umas poucas ocasiões em que se confederaram, ajudadas pelos europeus que viviam entre elas – pôde ser vencida por um inimigo pouco poderoso mas superiormente organizado, tecnologicamente mais avançado e, em consequência, mais bem armado.
As vitórias européias se deveram principalmente à condição evolutiva mais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia aglutinar-se em uma única entidade política servida por uma cultura letrada e ativada por uma religião missionária, que influenciou poderosamente as comunidades indígenas.” (ibidem, p. 49)

II) Gestação Étnica
Fixando-se ao longo da costa, os portugueses fazem uso da instituição indígena do “cunhadismo” com o objetivo de recrutar braços para a exploração econômica da terra e para o combate às tribos hostis. 
Tomam tantas esposas índias quanto lhes era possível, estabelecendo assim uma rede de parentesco – centenas de sogros, cunhados, genros – essencial à realização de seus propósitos. 
Tal processo, para Ribeiro, além de constituir o principal motor de povoamento e colonização do novo ambiente, terminaria por engendrar o núcleo e a base fundamental do que, no futuro, constituiria a etnia brasileira: uma infinidade de “mamelucos”, gerados no ventre índio a partir do sêmen branco, dotados de uma identidade própria que os diferenciava, por negação, tanto de seus pais portugueses quanto de suas mães índias:
“Assim é que, por via do cunhadismo, levado ao extremo, se criou um gênero humano novo que não era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros. Esse gênero de gente alcançou uma eficiência inexcedível, a seu pesar, como agentes da civilização. Falavam sua própria língua, tinham sua própria visão de mundo, dominavam um alta tecnologia de adaptação à floresta tropical. Tudo isso aurido de seu convívio compulsório com os índios de matriz tupi.” (ibidem, p. 109)

Trazidos da costa ocidental da África, os negros terminam por se integrar a esta célula original Tupi, sem reter, entretanto, uma herança cultural tão rica quanto a indígena. Tal fato se deveria à diversidade línguística e cultural das tribos traficadas para o Brasil, muitas delas hostis entre si. 
Esta “Babel” – segundo as palavras de Ribeiro –, submetida ao regime degradante do engenho, é compelida a se integrar passivamente ao universo cultural da nova sociedade, ainda que retendo para si inúmeros focos de resistência no campo da música, da culinária e da religião. 
Mas desempenharia dois papéis fundamentais: atuar como difusores da língua portuguesa, aprendida no duro trato com o capataz, a partir dos dois focos dinâmicos da economia colonial onde estavam fixados – o Nordeste açucareiro e a região das minas; dar origem, mesclando-se aos brancos, ao enorme contigente de mulatos que seria, somado aos mamelucos, um dos alicerces da ainda incipiente “brasilianidade”:
“Esses mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada, já que a identificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. Além de ajudar a propagar o português como língua corrente, esses mulatos, somados aos mamelucos, formaram logo a maioria da população que passaria, mesmo contra sua vontade, a ser vista e tida como gente brasileira.” (ibidem, p. 128)
“O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não negros, que eles se vêem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira.” (ibidem, p. 130)
“Trata-se, em essência, de construir uma representação co-participada como uma nova entidade étnica com suficiente consistência cultural e social para torná-la viável para seus membros e reconhecível por estranhos pela singularidade dialetal de sua fala e por outras singularidades. 
Precisava, por igual, ser também suficientemente coesa no plano emocional para suportar a animosidade inevitável de todos os mais dela excluídos e para integrar seus membros numa entidade unitária, apesar da diversidade interna dos seus membros ser frequentemente maior que suas diferenças com respeito a outras etnias.”
Constituem-se assim os núcleos “neobrasileiros” – entidades com ramificações rurais e urbanas, fortemente hierarquizadas, estratificadas, comandadas a partir da metrópole e integradas à economia mundial. 
Resultado do que Ribeiro identifica como um “salto evolutivo” em relação à matriz tupi, estas novas comunidades são agora capazes de “abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício de funções especializadas” (ibidem, p.121). 
Nelas, o povo brasileiro em germinação não teria acesso a funções de mando, executadas por uma camada superior, composta de três setores letrados:
“Tais eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia funções de governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos tropicais. 
Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram o comando da estrutura global. (...) Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana européia, menos independente de seus demais componentes, porque estava intermediada por Lisboa.” (ibidem, p. 125)
A partir destes núcleos iniciais, tem início um vertiginoso processo de aumento da população e ocupação territorial. O “arquipélago de implantes coloniais, ilhados e isolados uns dos outros por distâncias de milhares de quilômetros” (ibidem, p. 156) transforma-se, com o passar dos anos, em um continente compacto, articulado cultural e comercialmente em decorrência do surto minerador. 
A dizimação dos índios prossegue. Ribeiro aponta o intenso processo de “desindianização” que se dá em nossas terras, acompanhado do crescimento da população mameluca – herança do cunhadismo – e mulata – fruto do acasalamento entre escravos e senhores. Inverte-se, assim, nossa composição populacional. 
Os mestiços são agora maioria.
A “segunda invasão portuguesa”(ibidem, p. 157), com a vinda de 20 mil membros da corte Lusa para o Brasil, representou outro estímulo à integração. “O Brasil que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda uma classe dirigente competentíssima que, naturalmente, se faz pagar se apropriando do melhor que havia no país. 
Mas nos ensina a governar.” (ibidem, p. 157). Étnica e economicamente integrado, consolida-se assim, em fins do séc. XIX, o povo brasileiro – ainda na condição de “proletariado externo”:
“O resultado fundamental dos três séculos de colonização e dos sucessivos projetos de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessa população – de 5 milhões de habitantes, umas das mais numerosas das Américas de então –, com a simultânea deculturação e transfiguração étnica das suas diversas matrizes constitutivas. (...) 
O produto real do processo de colonização já era, naquela altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade étnica e economicamente integrada. 
Esse último resultado parece haver sido alcançado umas décadas antes, quando quase todos os núcleos brasileiros já se integravam em uma rede comercial interna e esta passara a ser mais importante que o mercado externo. 
Os revezes experimentados pelas diversas economias regionais de exportação e a consequente queda do poderio do empresariado latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação – o café –, que viria articular toda a força de trabalho para um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de proletariado externo.” (ibidem, p. 159)
Em síntese:
“Quisesse ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente da civilização agrário-mercantil em vias de se industrializar. Dentro de quaisquer desses tipos de civilização, o fracasso de uma linha de produção exportadora só incitava a descobrir outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia colonial, fortalecendo, em consequência, a dependência externa e a ordenação oligárquica interna” (ibidem, p. 160)

III) Processo sociocultural
Mas a gestação do “povo novo” não se fez sem conflitos. Ribeiro investe contra a idéia de uma suposta “cordialidade” inerente ao “pacífico” e “gentil” povo brasileiro. E passa a elencar as inúmeras “guerras do Brasil” (ibidem, p.167)
Os conflitos que acompanharam nossa formação teriam assumido variadas dimensões – étnica, social, econômica, religiosa, racial, etc. – e dificilmente poderiam ser observados em uma forma “pura”. Cada embate traria consigo múltiplas dimensões, exigindo, assim, um olhar atento à sua determinação predominante. 
O autor enumera alguns exemplos: a luta dos cabanos, de caráter marcadamente inter-étnico; a guerra de Palmares, de contornos raciais; o conflito de Canudos, de corte étnico, classista e racial. 
Se nosso povo se plasmou, de fato, na guerra, a colonização não deixou de constituir também um empreendimento – ou uma “empresa”, nas palavras do autor,
“No plano econômico, o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial, com distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e diferentes graus de rentabilidade. 
A principal delas, por sua alta eficácia operativa, foi a empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África. 
A segunda, também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse na competição com a primeira, e nos conflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância e prosperidade. 
A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra, que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou disfarçada.” (ibidem, p. 176)
Mas a competição entre tais empreendimentos também era acompanhada pela interdependência:
“Na realidade, competindo embora, essas três formas de organização empresarial se conjugavam para garantir, cada qual no desempenho de sua função específica, a sobrevivência e o êxito do empreendimento colonial português nos trópicos. As empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio. 
As missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo decisivamente para a liquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal entregues inermes a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. 
Foram, sobretudo, um criatório de gente.” (ibidem, p. 117)
A articulação, organização e controle da imensa “empresa Brasil” seria assegurada, por sua vez, pelas cúpulas empresarial e burocrática.

“Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação. 
Esse setor parasitário era, de fato, o componente predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil tarefas de intermediação entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo, no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função essencial, que era trocar mais da metade do açúcar e do ouro que aqui se produzia por escravos caçados na África, a fim de renovar o sempre declinante estoque de mão-de-obra necessário para sua produção” (ibidem, p. 178)
“Tratamos até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis, porém, sem a sua contraparte, que era o patriciado burocrático. Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e repressão. 
A seu lado, operando de forma solidária, estava a burocracia eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando, dignificando os que se ocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando a maior parte dos recursos que ficavam na terra, para com eles exaltar a grandeza de Deus nas casas e templos de suas ordens. 
Essa cúpula patricial, cuja elite era toda oriunda da metrópole, formava com a cúpula empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia, essencialmente solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas cruas oposições de interesses.” (ibidem, p.178)
Configurada assim desde os primórdios da “empresa Brasil”, tal estratificação social se perpetuará ao longo dos séculos. As mudanças que sofrerá constituirão muito mais uma renovação, adaptação ou até mesmo reinvenção de sua estrutura cúpulas-bases do que uma ruptura radical com uma ordem solidamente cristalizada:
“Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. 
Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além da riqueza, o poder de determinar o destino alheio.” (ibidem, p.208)
“Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. 
Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida.” (ibidem, p. 208)
“Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo clero e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem. 
Dentro dessa classe, entre o clero e os raros intelectuais, é que surgiram os mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgência mesmo foi encarnada por gente de seus estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados do que qualquer categoria de gente.” (ibidem, p. 209)
“Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc.” (ibidem, p. 209)
“Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade. 
São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição de classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la” (ibidem, p. 209)
“Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. 
E seu componente majoritário são as classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta de sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar os donos do poder.” (ibidem, p. 209)
“Essa configuração de classes antagônicas mas interdependentes organiza-se, de fato, para fazer oposição às classes oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados – em razão do pavor pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição social generalizada.” (ibidem, p. 210)
Em meio a uma estratificação que se perpetua, qual o caráter de nossas instituições republicanas?
“Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada proprietária. 
No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República, exerceu desde sempre um poderio hegemônico” (ibidem, p. 218)
“A sociedade resultante tem incompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório, para a maioria da população nacional; a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em consequência, a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática. 
Nessas condições ,a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma ordenação oligárquica que só se pode manter artificiosa ou repressivamente pela compressão das forças majoritárias às quais condena ao atraso ou à pobreza.” (ibidem, p. 219)
“Não é por acaso, pois, que o Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas instituições políticas constituem superafetações de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro.” (ibidem, p. 219)
Síntese: o arcaico e o moderno
Arcaísmo e modernidade. 
Talvez a chave para a compreensão do pensamento de Darcy Ribeiro resida na relação, muitas vezes conflituosa, entre estes dois pólos. O caráter de “povo novo” dos brasileiros – o fato de serem resultado da deculturação e transfiguração étnica de três matrizes distintas – os teria transformado em homens “tábula rasa”, prontos a absorver as forças renovadoras da Revolução Industrial. 
As antigas bandeiras mamelucas que se difundiram por todo o território nacional terminaram por engendrar um povo de grande homogeneidade étnica, receptivo à mudança, aberto ao diálogo entre suas ilhas de “modernidade” e seus bolsões “atrasados”:
“Esse é o resultado fundamental do processo de deculturação das matrizes formadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano cultural com relação a seus ancestrais europeus, africanos e indígenas, o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal.” (ibidem, p. 249)
Se nossa origem e especificidade, portanto, nos colocaram na ante-sala da modernidade, quais as razões para o nosso atraso frente aos países centrais? Ou, retomando a pergunta inicial de seu livro: “por que o Brasil ainda não deu certo?”
“A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. 
Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança 
Esse é o caso da propriedade fundiária, incompatível com a participação autônoma das massas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar as oportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à população. 
É também o caso da industrialização recolonizadora, promovida por corporações internacionais atuando diretamente ou em associação com os capitais nacionais. Embora modernize a produção e permita a substituição das importações, apenas admite a formação de um empresariado gerencial, sem compromissos outros que não seja o lucro a remeter a seus patrões. 
Estes se fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalho nacional com enormes contas de lucros e regalias. Seu efeito mais danoso é remeter para fora o excedente econômico que produzem, em lugar de aplicá-lo aqui. De fato, ele se multiplica é no estrangeiro.” (ibidem, p. 250)
“A mais grave dessas continuidades reside na oposição entre os interesses do patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povo brasileiro. Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio do poder institucional e do controle da máquina do Estado nas mãos da mesma classe dominante, que faz prevalecer uma ordenação social e legal resistente a qualquer processo generalizável a toda a população. 
Ela é que regeu a economia colonial, altamente próspera para uma minoria, mas que condenava o povo à penúria. Ela é que deforma, agora, o próprio processo de industrialização, impedindo que desempenhe aqui o papel transformador que representou em outras sociedades. 
Ainda é ela que, na defesa de seus interesses antinacionais e antipopulares, permite a implantação das empresas multinacionais, através das quais a civilização pós-industrial se põe em marcha como um mero processo de atualização histórica dos povos fracassados na história.” (ibidem, p. 251)
“Modernizada reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidade retrógrada, a sociedade brasileira não conforma um remanescente arcaico da civilização ocidental, cujos agentes lhe deram nascimento, mas um dos seus ‘proletariados externos’, conscritos para prover certas matérias-primas e para produzir lucros exportáveis. 
Um proletariado externo atípico com respeito aos protagonistas históricos, assim designados por Toynbee (1959), porque não possui uma cultura original e porque sua própria classe dirigente é o agente de sua dominação externa.”
Em síntese:
“Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. 
Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ‘ninguendade’. 
Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino.”
por Krishna Mendes Monteiro

Veja também o documentário sobre o livro:

domingo, 22 de março de 2015

[ Book Review ] Formação do Brasil Contemporâneo

Publicado em 1942, Formação do Brasil contemporâneo é um clássico do pensamento social e da historiografia brasileira que vem mobilizando estudiosos e atores políticos, seja para aceitar suas teses, problematizá-las ou mesmo rejeitá-las. 

Como poucos, o livro conseguiu formar nossa visão das origens coloniais do Brasil e do seu legado à nação. Divergindo daqueles que entendiam o período colonial em termos equivalentes ao feudalismo na Europa, Caio Prado Jr. o situa no processo de expansão ultramarina europeia resultante do capitalismo mercantil. 

Explicação tão bem-sucedida que dificilmente alguém acreditaria hoje num passado feudal brasileiro.

Mas este livro é um clássico também pelo que nos permite entender de certos desafios tenazes, ainda hoje abertos à sociedade. Sua tese fundamental é a de “sentido da colonização”, que expressa a reiteração, mesmo após a nossa independência política, do papel do Brasil como fornecedor de produtos primários demandados pelo mercado externo. 


Apesar das mudanças em curso desde então, e das novas configurações da cada vez mais complexa dialética entre centro e periferia, talvez bastasse constatar a importância no Brasil de hoje das commodities agrícolas e minerais para sugerir a atualidade da análise central do livro.

Caio Prado Jr

Caio da Silva Prado Júnior nasceu em São Paulo, em 1907 em uma família de políticos e da sociedade nobre paulista. Formado em Direito, foi também escritor, geógrafo, historiador, político e editor. 
Bacharelou-se em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde mais tarde seria livre-docente de Economia Política.
Como intelectual teve importante atuação política ao longo das décadas de 1930 e 1940, tendo participado das articulações para a Revolução de 1930. Decepcionado com a inconsistência política e ideológica da República Nova, aproximou-se do marxismo e filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, em 1931.
Por sua posição política e militância, Caio Prado Jr foi preso e exilado pela ditadura do Estado Novo nos anos 30 e também pela Ditadura Militar nos anos 60. 
Ao lançar A Revolução Brasileira em 1966, e conceder entrevista criticando a luta armada, teve também cassado o seu título de Livre Docente pela faculdade de de Direito da USP. 
Geógrafo e com formação em Direito, foi porém na História que Caio Prado Jr finca sua obra literária, iniciada com Evolução Política do Brasil (1933), e tem em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, a consolidação de referência definitiva para toda uma geração de historiadores, sociólogos e acadêmicos. 

Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia

Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia é estruturado em três partes "Povoamento", "Vida Material" e "Vida Social" que vem precedidos de um texto chamado "O Sentido da Colonização".
Caio Prado diz que a colonização era apenas mais um item da empresa em que estavam imbuídos os portugueses, mas não é tão rigoroso com a metrópole como é com a colônia, chegando a comparar as colônias de clima tropical com as de clima temperado e colocando as tropicais, caso do Brasil, como inferiores.
Na parte dedicada ao "Povoamento", o livro se divide em Povoamento, Povoamento Interior, Correntes de povoamento e Raças. Neste capítulo vemos como foi formada a população do Brasil colônia, onde não se tem precisão sobre a densidade demográfica do Brasil no período e as informações sobre a população só eram colhidas para fins eclesiásticos ou militares.
É traçado um panorama sobre a expansão marítima e o comércio europeu, principalmente Ibérico, em fins do século XV e início do XVI onde há um grande movimento de expansão por parte principalmente dos ibéricos.
A região nordeste - principalmente Pernambuco e Bahia - tem grande importância no povoamento da colônia, que era dividido em núcleos como o núcleo litorâneo, que conferia ao dois estados nordestinos já citados e ao Rio de janeiro um papel de extrema importância na formação da população colonial.
Caio fala sobre o povoamento do interior do Brasil, com sua agricultura de subsistência, lugares como Goiás mato Grosso e minas Gerais, além de São Paulo, onde faz uma ressalva desconsiderando as expedições bandeirantes que não eram povoadoras e sim exploradoras e de sentido nômade. 
As três raças, ou culturas como defendia outro historiador - Gilberto Freyre - são vistas de forma bem díspares por Caio Prado. Dos portugueses vieram os excedentes demográficos do Reino, enfraquecido pelo comércio com o Oriente.

O negro aparece com um ser boçal, uniformizado pela escravidão, um braço sem cultura e sem vontade própria, do qual o colonizador serviu-se de sua força e do forte apelo sexual de suas mulheres e rejeita a tese que a escravidão foi "(...) um molde comum que os identificou." (p. 81).
Ao falar do índio, é dito que "(...) o índio foi o problema mais complexo que a colonização teve de enfrentar". (p. 86). O colonizador objetivava retirá-lo da selva e oferecê- lo uma vida cristã em troca de sua escravidão, situação amenizada pelas missões jesuítas que mereceram um destaque no livro, além da Legislação Pombalina.
A miscigenação e a mestiçagem do povo brasileiro era feita mais branco/negro e negro/branco, no livro não se descreve com a mesma ênfase a relação branco/índio e em escala inferior negro/índio. Há também a escassez de mulheres brancas e também a sua falada "frieza".
Nesta primeira parte do livro somos apresentados a um grande diferencial entre Caio e outros autores que trataram do mesmo tema. Caio analisa mais profundamente as correntes de povoamento, levando em conta suas diferenças regionais e culturais , não generalizando, transformando em uma massa uniforme.
Ao falar sobre "Vida Material", Caio dá uma ênfase à economia colonial, que tem na agricultura seu mais forte expoente, seguida da mineração e em escala menor a pecuária. 
Predominava a monocultura, trabalhada por escravos, era uma agricultura de coivara, descrita como uma continuação da agricultura indígena, com imenso desmatamento e totalmente extrativista, sem preocupação em trabalhar o solo e sim esgotá-lo e abandoná-lo em prol de outro ainda virgem.
A lavoura determinou toda organização social e econômica através da "(...) disposição das classes e categorias de sua população, o estatuto particular de cada uma e dos indivíduos que as compõem." (p. 142). Havia a agricultura de exportação com forte trabalho escravo e a agricultura de subsistência trabalhada pelo próprio lavrador, modesto e mesquinho.

Os produtos mais cultivados eram o algodão, a cana de açúcar e o tabaco que "(...) constituem os fundamentos da agricultura colonial." (p. 151). Em escala menor era cultivado o cacau, o arroz e o anil, que é descrito como uma esperança frustrada, pois não era competitivo perante o anil indiano.
A mineração - a mais conhecida pelo senso comum, através do ouro das Minas Gerais - é descrita sob a forma de uma indústria mineradora que esgotava os recursos minerais da colônia e enviava quase toda sua produção para fora do país e (...) deixou to poucos vestígios, a não ser a prodigiosa destruição dos recursos naturais que semeou pelos distritos mineradores, e que ainda hoje fere a vista do observador (...)" (p. 173)
A pecuária é analisada sob as particularidades regionais, nos estados do sul era mais avançada, devido ao domínio espanhol na pecuária da região, outro grande centro foi Minas Gerais e havia o contrabando interno de bestas, muito úteis na lavoura e no transporte da produção.
A região amazônica tem seu destaque na cultura extrativista principalmente pela extração madeireira, além da extração do sal e da caça à baleia, também realizadas em outras regiões e encerra falando de atividades ligadas as artes e a indústria, onde se destacam o artesanato, com sua cerâmica e a indústria incipiente e de pouca expressão.
O comércio é analisado através de sua estrutura fincada na base colonial de produção de gêneros tropicais e matais preciosos para um comércio exterior - feito essencialmente por via marítima - e o pequeno comércio interno, onde "o contrabando era mais fácil e proveitoso." (p.237)
As vias de comunicação e transporte são dissecadas em sua particularidades e dificuldades. No transporte terrestre, a precariedade de estradas, onde há o predomínio de matas fechadas, e o transporte fluvial e suas dificuldades diversas, como o grande número de pedras e quedas em nossos rios e as correntes marítimas que dificultavam a navegação de cabotagem.
Das três partes em que está calcada a obra, é essa que merece maior atenção e esmero por parte do autor que traz uma farta e pormenorizada informação sobre a economia colonial.

Ao falar sobre a "Vida Social", é deixado claro que a mola mestra pra o funcionamento da sociedade colonial foi a mão de obra escrava e no início deste capítulo é feito um paralelo entre a escravidão empregada no Brasil Colônia e a escravidão antiga.
Surge assim um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe todos os padrões morais e materiais estabelecidos. 
Traz uma revolução, mas nada prepara. (...) Nada mais particular, mesquinho e unilateral. (P. 278)
Caio Prado com essa observação atenua um pouco o discurso racista que usa contra o escravo negro, que é citado em toda a sua obra e cita que a religião católica, mesclou-se com rituais e crenças africanas. Mesmo assim mais a frente Caio volta com seu discurso racista dizendo: "A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é além daquela energia motriz quase nula." (p. 280)
A organização social estava centrada na figura da "família patriarcal" ? como também defendeu Sérgio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil - as cidades tinham uma hierarquia e organização social herdada dos grandes engenhos. Tudo gravita em torno da sociedade patriarcal, católica e escravocrata.
Caio neste em que usa várias páginas para discorrer sobre a escravidão, cita também ao preconceito do colonizador, que não aceitava seus descendentes realizando "trabalhos mecânicos" que eram destinados a negros ou a libertos, que eram enxergados sob a mesma ótica.
É citada uma pequena massa de profissionais liberais e é descrita a classe dos vadios, que sem ocupação oficial, tendem a enveredar pelo crime e praticar desordem. Habitavam as vilas assim como as prostitutas.
Aqui Caio cunha o conceito de orgânico - no qual insere a família patriarcal e a total mão de obra escrava -  e o inorgânico - formado por essa população livre que praticava a agricultura de subsistência e pelos "vadios".
Além da família patriarcal uma segunda esfera de poder na colônia era a igreja, com seus laços estreitos na família patriarcal, constitui uma base econômica sólida e centralizada na colônia.

A "Administração Colonial" é definida como desarmônica e caótica onde são mostradas as diversas esferas de poder com o "Governador das Armas" e o "Governador da Justiça" a acumulação de tributos e a importância do "Real Erário" e do dízimo eclesiástico, que foi incorporado aos impostos reais.
È falado também de forma sucinta e concisa das Forças Armadas, e das "milícias não oficiais" mas que acabam sendo "extra-oficiais.". É citado também um sistema eleitoral onde participam os "Homens bons", ao povo é vedada a participação. È também citado a Administração dos Índios, a Intendência do ouro e dos diamantes e a Intendência da Marinha.
Por fim é falado de forma bem reduzida a Vida Social e Política" da colônia onde "Raças e indivíduos mal se unem, não se fundem num todo coeso: justapõe-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e grupos incoerentes que apenas coexistem e se tocam." (p. 353). 
E aí mais uma vez aparece a escravidão onde vale à pena citar uma nota de rodapé:
A escravidão foi uma das poucas coisas com vistos de organização que esta país jamais possuiu... Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo esforço de toda a ordem que então possuímos e findou toda a produção material que ainda temos. (p. 386)
O colonizador português vai o Brasil não como uma sociedade ou uma economia e sim, tão somente como "finanças" à cuidar. O sistema colonial não era "reformável" e começa a surgir assim o seu enfraquecimento, talvez influenciado pelas revoltas interna que pululam o Brasil no século XVIII. 
Aparece aqui também a figura da Maçonaria, que influencio de forma sutil e indireta as idéias desse início de século
No livro é defendida a tese da Independência, quase que por conveniência, como uma solução para a metrópole, pois a colônia estava virando um "fardo" difícil de carregar e que o século XIX, principalmente após a chegada da família real portuguesa seria desgastante para a metrópole, que assim viu sua colônia independente, mas continuou administrando-a, através de seus imperadores da família Bragança.

Conclusão

Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia, é uma obra para ser lida e relida, devido a grande gama de informações nela contidas e que com sua riqueza de detalhes vem 
elucidar e desfazer algumas ideias que ficaram como "senso comum" e enraizadas no inconsciente popular causando visões distorcidas e juízos de valor errôneos sobre as relações colônia/metrópole, principalmente sob seu viés econômico.
Caio Prado coloca-se assim como uma grande referência - assim como seus contemporâneos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda - e leitura obrigatória a quem quiser entender mais sobre a formação e a organização que originou o que vivemos hoje.

fontes: (1) Web Artigos
            (2) Revista Políticas Públicas UFMA
            (3) EACH - USP

sexta-feira, 20 de março de 2015

[ Book Review ] Raízes do Brasil

“Raízes do Brasil” é um dos livros mais importantes para o entendimento da formação social do Brasil. 

Ao lado de “Evolução Política do Brasil” de Caio Prado Jr e da dobradinha “Casa Grande & Senzala/Sobrados e Mucambos” de Gilberto Freyre, é essencial para a boa formação de um cientista social.

Leitura obrigatória para se entender as origens e a formação multiétnica do povo brasileiro.   










Sérgio Buarque de Holanda 

Sérgio Buarque de Holanda foi um dos mais importantes historiadores brasileiros. Foi também escritor, jornalista e crítico literário. Sérgio  nasceu em São Paulo em 1902 e veio a falecer, também em São Paulo em 1982. 

Escreveu vários livros, como "Cobra de Vidro"(1944), "Caminhos e Fronteiras"(1957), "Visão do Paraíso" e sua obra mais famosa foi "Raízes do Brasil" de 1936.   

Raízes do Brasil

Raízes do Brasil trata, essencialmente, da transição do modo rural para o urbano que se delineava nas primeiras décadas do século XX na sociedade brasileira. É muito importante perceber que o livro foi escrito diante de um cenário de centralização administrativa que alterou o lugar dos grupos de poder local e regional, principalmente depois da Revolta de 1930.

Fazendo uma análise mais global do livro, é possível notar que Sergio Buarque de Holanda desenvolve um raciocínio partindo de uma visão macro e sucessivamente vai destrinchando cada tema mais restrito, até chegar às verdadeiras “Raízes do Brasil”. 

Partindo da análise do que seriam Portugal e Espanha – Fronteiras da Europa, passando pela cultura da personalidade e a virtude da aventura, depois dissertando sobre a herança que o brasileiro traz desse contato, os desdobramentos da “Cordialidade” e por fim a chegada dos novos tempos.

Em tese, poderíamos intuir que Sergio Buarque está se perguntando “que tipo de urbano será possível em uma sociedade que ainda demonstra muitos aspectos e condutas do antigo meio rural?” 

Segundo sua análise mais complexa, seria necessário buscar uma explicação bem longe daqui. 

Para ele, Portugal e Espanha não faziam parte do bloco econômico-cultural da Europa. Por esse motivo ele intitula o primeiro capítulo como “Fronteiras da Europa”, pois para ele a Ibéria apresentava uma cultura muito miscigenada, influenciada por diversas religiões e invasões de outros povos que não faziam parte do bloco dos países centrais do continente europeu.

Na sociedade ibérica, não só era possível, como também era desejável que houvesse uma ascensão social. Em outras palavras, a mobilidade social era permitida e até incentivada. Característica muito distinta da que se apresentava na Europa, pois o Feudalismo europeu se mostrou tão fortemente presente que fora preciso que a burguesia se organizasse através de uma Revolução para ter condições de penetrar nas classes mais abastadas daquela estrutura social. 

Já na Ibéria, até mesmo aqueles indivíduos que ocupavam a posição de escravo, podiam ascender socialmente, chegando estes a possuir outros escravos. No livro As Metamorfoses do Escravo de Octavio Ianni, esta ascensão social fica bem cristalina.

Na verdade, na concepção Ibérica da natureza humana, há de se valorizar o indivíduo que cresce e se desenvolve ao longo da vida. É o que Sergio Buarque chama de “Cultura da Personalidade”, um sentimento de autonomia e independência de um indivíduo que se sobressai em relação aos demais. 

Isto é tido como um “valor”, sendo desejável e admirável. Este sentimento, muito perene no descobridor desbravador, representa além de outras coisas, uma característica que confere ao indivíduo a possibilidade da mover socialmente na estrutura da sociedade Ibérica.

Tanto em Portugal quanto na Espanha, o regime feudal nunca foi tão rígido, exatamente por isso, não foi necessário promover uma revolução como as que ocorreram na França e na Inglaterra. O Brasil como herdeiro dessa cultura, apresenta uma acomodação desses regimes, promovendo uma transição suave, sem ruptura. 

A característica mais marcante dessa acomodação pode ser exemplificada pela figura do “Homem Cordial”. Lembrando que a cordialidade não tem relação com modo cortês e sim se cristaliza pelo trato maleável que o brasileiro costuma se relacionar no seu dia-a-dia. 

Podendo ser compreendido pelo famoso “jeitinho brasileiro”, pela situação corriqueira de uma pessoa que vendo uma gigantesca fila bancária, logo se apressa em procurar um conhecido que esteja mais próximo do caixa, com o objetivo de agilizar sua vida, não sendo capaz de perceber que acaba por prejudicar outras pessoas.

Esta anedota serva para mostrar o que Sergio Buarque chama de conflito entre público/privado. Para ele, a presença da “cordialidade” faz com que os indivíduos tenham dificuldade para discernir o público daquilo que é privado. Desta maneira, as pessoas acabam usando de suas preferências particulares que deveriam ficar restritas aos relacionamentos e aos assuntos privados, acabem sendo empregadas no âmbito público.

Segundo ele, estas relações sociais predominantemente patriarcais, interferem na transição dessa sociedade causando um desequilíbrio social. Sergio Buarque aponta as tensões da cidade como herança do sistema patriarcal, colocando o patrimonialismo e o personalismo como obstáculos a uma sociedade impessoal, moderna e livre que são características imperativas para esses novos tempos de urbanização.

Resumo do Livro

O primeiro capítulo, “Fronteiras da Europa”, dispõe características dos países da Península Ibérica e suas diferenças no processo de colonização da América. 
O autor proporciona a reflexão sobre os defeitos dos brasileiros dos dias atuais, tais como frouxidão das instituições e a falta de coesão social, mostrando que esses sempre existiram desde a origem. 
Em outras palavras, possibilita o entendimento da origem do brasileiro, cujos defeitos foram herdados de nossos colonizadores. Alude a um dos temas fundamentais do livros: a repulsa pelo trabalho regular e as atividades utilitárias.
No segundo capítulo, “Trabalho e aventura”, o autor distingue o trabalhador e o aventureiro, os quais possuem éticas opostas. O primeiro busca segurança e recompensa a longo prazo, já o segundo busca novas experiências e a riqueza a curto prazo. 
Dessa forma, considera que espanhóis e portugueses foram aventureiros no novo continente e Holanda afirma que essas características foram positivas para o Brasil.
O terceiro capítulo, “Herança rural”, analisa a marca da vida rural na formação da sociedade brasileira. Expõe sobre os donos de terras brasileiros, que ao contrário dos europeus, viviam nas colônias, providenciavam sua própria segurança e faziam suas próprias leis, direito esse concedido pelo pátrio poder. 
As pessoas iam aos centros urbanos a fim de participar de solenidades e festejos. O autor termina o capítulo afirmando que o ruralismo predominou pelo esforço dos colonizadores e não por imposição do meio.
O quarto capítulo, “O semeador e o ladrilhador” estuda a importância da cidade como instrumento de dominação e a diferença entre espanhol e português nesse aspecto. O espanhol teve como intuito estabelecer um prolongamento estável da Metrópole, enquanto que os portugueses foram “semeadores” de cidades irregulares nascidas e criadas no litoral.
O quinto capítulo, “O homem cordial”, aborda as consequências do desenvolvimento da urbanização, que acarretaria um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. 
O título do capítulo não pressupõe bondade, mas o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva não necessariamente sinceras nem profundas.
O sexto capítulo, “Novos tempos”, estuda consequências dos aspectos dispostos anteriormente na configuração da sociedade brasileira, a partir de 1808 com a vinda da Corte portuguesa, que causou o primeiro choque nos velhos padrões coloniais.
O sétimo e último capítulo, “Nossa revolução”, sugere como a dissolução da ordem tradicional ocasiona contradições não resolvidas, que nascem no nível da estrutura social e se manifestam no das instituições e ideias políticas.
Raízes do Brasil é uma obra fundamental para o estudo sociológico e científico brasileiro, que vai buscar as origens culturais do país em Portugal, no latifúndio escravocrata e na família patriarcal rural. 
É importante lembrar que o Brasil contemporâneo ao que o autor se refere é o da década de 30. Por isso, nos dias de hoje deve-se ler e analisar a obra com cuidado para que não sejam cometidos anacronismos, dificultando a compreensão da importância que a obra traz para o estudo da história do país. 
Consiste em leitura obrigatória para os estudantes e cientistas que buscam compreender as raízes brasileiras e sua própria cultura.
fontes:  (1) Blog Sociologia & Antropologia
             (2) Portal Investidura

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