O Povo Brasileiro foi o último livro escrito pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, antes de sua morte em 1997.
Lançado em 1995, a obra aborda a história da formação do povo brasileiro, tratando das matrizes culturais e dos mecanismos de formação étnica e cultural do povo brasileiro.
Em O Povo Brasileiro, Darcy utiliza opiniões e impressões formadas pela sua própria experiência da vida.
No livro são apresentadas as formas através das quais a empresa "Brasil" moldou as zonas de habitação humana no território nacional e sua influência na miscigenação das 3 matrizes básicas formadoras do brasileiro.
O Povo Brasileiro foi escrito em Maricá, cidade do litoral do Rio de Janeiro, para onde Darcy Ribeiro fugiu abandonando o hospital em que estava internado e, segundo suas próprias palavras no prefácio do livro, "na iminência de morrer sem concluí‐lo", tendo sido esta obra o seu maior desafio.
Darcy Ribeiro
Darcy foi antropólogo, escritor e político brasileiro, conhecido por seus estudos e suas obras sobre os índios e a educação no Brasil. Nasceu em 1922 e faleceu em 1997.
Formou-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo em 1946 e dedicou seus primeiros anos de vida profissional ao estudo dos índios do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia.
Foi um dos fundadores da Universidade de Brasília, no início dos anos 1960.
Darcy foi ministro da Educação durante Governo do presidente João Goulart entre 1962 e 1963 e chefe da Casa Civil entre 1963 e 1964).
Durante a ditadura militar brasileira teve seus direito políticos cassados e foi obrigado a se exilar, vivendo durante alguns anos no Uruguai.
Foi vice-governador do estado do Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola entre 1983 e 1987 e senador, também pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte em 1997.
Darcy escreveu escreveu várias trabalhos sobre Antropologia, Etnologia e Educação. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas, como Inglês, Alemão, Espanhol, Francês, Italiano, Hebraico, Húngaro e Tcheco.
Escreveu também alguns romances e ensaios e figura entre os mais maiores intelectuais brasileiros.
O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil
“Por que o Brasil ainda não deu certo?”
“Por que o Brasil ainda não deu certo?”
Esta é a questão que motiva a obra de Darcy Ribeiro (2002), dedicada a compreender o Brasil e os brasileiros – sua gestação como povo e seu lugar específico na história humana.
Ribeiro, no quadro de sua teoria da história.
Ribeiro, no quadro de sua teoria da história.
Darcy cunha dois conceitos com os quais trabalhará ao longo de toda sua obra: a) “povo novo” e b) “transfiguração étnica”.
O primeiro diria respeito ao resultado da confluência das três matrizes raciais – portuguesa, negra e indígena – que deram origem ao brasileiro e à sua especificidade:
“Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um “povo novo” (Ribeiro, 1970) num novo modelo de estruturação societária.
“Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um “povo novo” (Ribeiro, 1970) num novo modelo de estruturação societária.
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos.
Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. “Povo novo”, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial.
Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros” (Ribeiro, 1970: 19)
O caráter de novidade, contudo, do povo brasileiro, carregaria consigo a outra face da mesma moeda – um povo que é simultaneamente “novo” e “velho”:
“Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (ibidem, p. 20).
O caráter de novidade, contudo, do povo brasileiro, carregaria consigo a outra face da mesma moeda – um povo que é simultaneamente “novo” e “velho”:
“Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (ibidem, p. 20).
Já o conceito de “transfiguração étnica” diria respeito ao processo através do qual os povos surgem, se transformam ou morrem.
Ribeiro aplica tais termos à análise da realidade histórica brasileira, estruturando seu estudo em torno de cinco eixos:
I) “O Novo Mundo”, que situa a formação do Brasil dentro do processo de expansão dos “impérios mercantis salvacionistas” europeus;
II) “Gestação Étnica”, que mapeia os processos responsáveis pelo surgimento da etnia brasileira a partir de suas três matrizes formadoras;
III) “Processo Sociocultural”, que identifica as forças responsáveis pela diversificação de nossa matriz étnica originária em diversos “modos rústicos de ser” dos brasileiros;
IV) “Os Brasis na história”, dedicado à identificação e descrição destes modos de ser;
V) “O Destino Nacional”, que analisa o tipo de estratificação social que advém de nosso processo de formação, assim como suas consequências em termos de tensões dissociativas de caráter traumático.
I) O Novo Mundo
Ribeiro situa a expansão ultramarina portuguesa dentro do amplo “processo civilizatório” que deu origem a dois Estados nacionais precocemente unificados: Portugal e Espanha. Impulsionados pela força de suas revoluções tecnológica, mercantil e política, tais nações se projetam, a partir da Península Ibérica, em direção às Américas, África e Ásia, motivados por uma ideologia salvacionista que ambicionava unificar todos os povos pagãos sob a égide de um império mundial católico-romano.
Ao chegar ao Brasil, os portugueses se defrontam com centenas de tribos do tronco tupi que ocupavam o litoral. É chegada a hora do “enfrentamento dos mundos” – batalha que, nas palavras de Ribeiro, foi francamente desfavorável aos índios:
“Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava suas desumanização como bestas de carga.
“Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava suas desumanização como bestas de carga.
Nesse conflito de vida ou morte, os índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias, armas e astúcias. Entretanto, cada tribo, lutando por si, desajudada pelas demais – exceto em umas poucas ocasiões em que se confederaram, ajudadas pelos europeus que viviam entre elas – pôde ser vencida por um inimigo pouco poderoso mas superiormente organizado, tecnologicamente mais avançado e, em consequência, mais bem armado.
As vitórias européias se deveram principalmente à condição evolutiva mais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia aglutinar-se em uma única entidade política servida por uma cultura letrada e ativada por uma religião missionária, que influenciou poderosamente as comunidades indígenas.” (ibidem, p. 49)
II) Gestação Étnica
II) Gestação Étnica
Fixando-se ao longo da costa, os portugueses fazem uso da instituição indígena do “cunhadismo” com o objetivo de recrutar braços para a exploração econômica da terra e para o combate às tribos hostis.
Tomam tantas esposas índias quanto lhes era possível, estabelecendo assim uma rede de parentesco – centenas de sogros, cunhados, genros – essencial à realização de seus propósitos.
Tal processo, para Ribeiro, além de constituir o principal motor de povoamento e colonização do novo ambiente, terminaria por engendrar o núcleo e a base fundamental do que, no futuro, constituiria a etnia brasileira: uma infinidade de “mamelucos”, gerados no ventre índio a partir do sêmen branco, dotados de uma identidade própria que os diferenciava, por negação, tanto de seus pais portugueses quanto de suas mães índias:
“Assim é que, por via do cunhadismo, levado ao extremo, se criou um gênero humano novo que não era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros. Esse gênero de gente alcançou uma eficiência inexcedível, a seu pesar, como agentes da civilização. Falavam sua própria língua, tinham sua própria visão de mundo, dominavam um alta tecnologia de adaptação à floresta tropical. Tudo isso aurido de seu convívio compulsório com os índios de matriz tupi.” (ibidem, p. 109)
Trazidos da costa ocidental da África, os negros terminam por se integrar a esta célula original Tupi, sem reter, entretanto, uma herança cultural tão rica quanto a indígena. Tal fato se deveria à diversidade línguística e cultural das tribos traficadas para o Brasil, muitas delas hostis entre si.
Trazidos da costa ocidental da África, os negros terminam por se integrar a esta célula original Tupi, sem reter, entretanto, uma herança cultural tão rica quanto a indígena. Tal fato se deveria à diversidade línguística e cultural das tribos traficadas para o Brasil, muitas delas hostis entre si.
Esta “Babel” – segundo as palavras de Ribeiro –, submetida ao regime degradante do engenho, é compelida a se integrar passivamente ao universo cultural da nova sociedade, ainda que retendo para si inúmeros focos de resistência no campo da música, da culinária e da religião.
Mas desempenharia dois papéis fundamentais: atuar como difusores da língua portuguesa, aprendida no duro trato com o capataz, a partir dos dois focos dinâmicos da economia colonial onde estavam fixados – o Nordeste açucareiro e a região das minas; dar origem, mesclando-se aos brancos, ao enorme contigente de mulatos que seria, somado aos mamelucos, um dos alicerces da ainda incipiente “brasilianidade”:
“Esses mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada, já que a identificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. Além de ajudar a propagar o português como língua corrente, esses mulatos, somados aos mamelucos, formaram logo a maioria da população que passaria, mesmo contra sua vontade, a ser vista e tida como gente brasileira.” (ibidem, p. 128)
“O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não negros, que eles se vêem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira.” (ibidem, p. 130)
“Trata-se, em essência, de construir uma representação co-participada como uma nova entidade étnica com suficiente consistência cultural e social para torná-la viável para seus membros e reconhecível por estranhos pela singularidade dialetal de sua fala e por outras singularidades.
Precisava, por igual, ser também suficientemente coesa no plano emocional para suportar a animosidade inevitável de todos os mais dela excluídos e para integrar seus membros numa entidade unitária, apesar da diversidade interna dos seus membros ser frequentemente maior que suas diferenças com respeito a outras etnias.”
Constituem-se assim os núcleos “neobrasileiros” – entidades com ramificações rurais e urbanas, fortemente hierarquizadas, estratificadas, comandadas a partir da metrópole e integradas à economia mundial.
Resultado do que Ribeiro identifica como um “salto evolutivo” em relação à matriz tupi, estas novas comunidades são agora capazes de “abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício de funções especializadas” (ibidem, p.121).
Nelas, o povo brasileiro em germinação não teria acesso a funções de mando, executadas por uma camada superior, composta de três setores letrados:
“Tais eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia funções de governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos tropicais.
Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram o comando da estrutura global. (...) Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana européia, menos independente de seus demais componentes, porque estava intermediada por Lisboa.” (ibidem, p. 125)
A partir destes núcleos iniciais, tem início um vertiginoso processo de aumento da população e ocupação territorial. O “arquipélago de implantes coloniais, ilhados e isolados uns dos outros por distâncias de milhares de quilômetros” (ibidem, p. 156) transforma-se, com o passar dos anos, em um continente compacto, articulado cultural e comercialmente em decorrência do surto minerador.
A dizimação dos índios prossegue. Ribeiro aponta o intenso processo de “desindianização” que se dá em nossas terras, acompanhado do crescimento da população mameluca – herança do cunhadismo – e mulata – fruto do acasalamento entre escravos e senhores. Inverte-se, assim, nossa composição populacional.
Os mestiços são agora maioria.
A “segunda invasão portuguesa”(ibidem, p. 157), com a vinda de 20 mil membros da corte Lusa para o Brasil, representou outro estímulo à integração. “O Brasil que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda uma classe dirigente competentíssima que, naturalmente, se faz pagar se apropriando do melhor que havia no país.
Mas nos ensina a governar.” (ibidem, p. 157). Étnica e economicamente integrado, consolida-se assim, em fins do séc. XIX, o povo brasileiro – ainda na condição de “proletariado externo”:
“O resultado fundamental dos três séculos de colonização e dos sucessivos projetos de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessa população – de 5 milhões de habitantes, umas das mais numerosas das Américas de então –, com a simultânea deculturação e transfiguração étnica das suas diversas matrizes constitutivas. (...)
O produto real do processo de colonização já era, naquela altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade étnica e economicamente integrada.
Esse último resultado parece haver sido alcançado umas décadas antes, quando quase todos os núcleos brasileiros já se integravam em uma rede comercial interna e esta passara a ser mais importante que o mercado externo.
Os revezes experimentados pelas diversas economias regionais de exportação e a consequente queda do poderio do empresariado latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação – o café –, que viria articular toda a força de trabalho para um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de proletariado externo.” (ibidem, p. 159)
Em síntese:
“Quisesse ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente da civilização agrário-mercantil em vias de se industrializar. Dentro de quaisquer desses tipos de civilização, o fracasso de uma linha de produção exportadora só incitava a descobrir outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia colonial, fortalecendo, em consequência, a dependência externa e a ordenação oligárquica interna” (ibidem, p. 160)
III) Processo sociocultural
Mas a gestação do “povo novo” não se fez sem conflitos. Ribeiro investe contra a idéia de uma suposta “cordialidade” inerente ao “pacífico” e “gentil” povo brasileiro. E passa a elencar as inúmeras “guerras do Brasil” (ibidem, p.167)
Os conflitos que acompanharam nossa formação teriam assumido variadas dimensões – étnica, social, econômica, religiosa, racial, etc. – e dificilmente poderiam ser observados em uma forma “pura”. Cada embate traria consigo múltiplas dimensões, exigindo, assim, um olhar atento à sua determinação predominante.
O autor enumera alguns exemplos: a luta dos cabanos, de caráter marcadamente inter-étnico; a guerra de Palmares, de contornos raciais; o conflito de Canudos, de corte étnico, classista e racial.
Se nosso povo se plasmou, de fato, na guerra, a colonização não deixou de constituir também um empreendimento – ou uma “empresa”, nas palavras do autor,
“No plano econômico, o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial, com distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e diferentes graus de rentabilidade.
A principal delas, por sua alta eficácia operativa, foi a empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África.
A segunda, também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse na competição com a primeira, e nos conflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância e prosperidade.
A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra, que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou disfarçada.” (ibidem, p. 176)
Mas a competição entre tais empreendimentos também era acompanhada pela interdependência:
“Na realidade, competindo embora, essas três formas de organização empresarial se conjugavam para garantir, cada qual no desempenho de sua função específica, a sobrevivência e o êxito do empreendimento colonial português nos trópicos. As empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio.
As missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo decisivamente para a liquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal entregues inermes a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro.
Foram, sobretudo, um criatório de gente.” (ibidem, p. 117)
A articulação, organização e controle da imensa “empresa Brasil” seria assegurada, por sua vez, pelas cúpulas empresarial e burocrática.
“Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação.
“Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação.
Esse setor parasitário era, de fato, o componente predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil tarefas de intermediação entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo, no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função essencial, que era trocar mais da metade do açúcar e do ouro que aqui se produzia por escravos caçados na África, a fim de renovar o sempre declinante estoque de mão-de-obra necessário para sua produção” (ibidem, p. 178)
“Tratamos até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis, porém, sem a sua contraparte, que era o patriciado burocrático. Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e repressão.
A seu lado, operando de forma solidária, estava a burocracia eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando, dignificando os que se ocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando a maior parte dos recursos que ficavam na terra, para com eles exaltar a grandeza de Deus nas casas e templos de suas ordens.
Essa cúpula patricial, cuja elite era toda oriunda da metrópole, formava com a cúpula empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia, essencialmente solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas cruas oposições de interesses.” (ibidem, p.178)
Configurada assim desde os primórdios da “empresa Brasil”, tal estratificação social se perpetuará ao longo dos séculos. As mudanças que sofrerá constituirão muito mais uma renovação, adaptação ou até mesmo reinvenção de sua estrutura cúpulas-bases do que uma ruptura radical com uma ordem solidamente cristalizada:
“Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros.
Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além da riqueza, o poder de determinar o destino alheio.” (ibidem, p.208)
“Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes.
Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida.” (ibidem, p. 208)
“Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo clero e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem.
Dentro dessa classe, entre o clero e os raros intelectuais, é que surgiram os mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgência mesmo foi encarnada por gente de seus estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados do que qualquer categoria de gente.” (ibidem, p. 209)
“Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc.” (ibidem, p. 209)
“Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade.
São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição de classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la” (ibidem, p. 209)
“Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas.
E seu componente majoritário são as classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta de sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar os donos do poder.” (ibidem, p. 209)
“Essa configuração de classes antagônicas mas interdependentes organiza-se, de fato, para fazer oposição às classes oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados – em razão do pavor pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição social generalizada.” (ibidem, p. 210)
Em meio a uma estratificação que se perpetua, qual o caráter de nossas instituições republicanas?
“Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada proprietária.
No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República, exerceu desde sempre um poderio hegemônico” (ibidem, p. 218)
“A sociedade resultante tem incompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório, para a maioria da população nacional; a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em consequência, a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática.
Nessas condições ,a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma ordenação oligárquica que só se pode manter artificiosa ou repressivamente pela compressão das forças majoritárias às quais condena ao atraso ou à pobreza.” (ibidem, p. 219)
“Não é por acaso, pois, que o Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas instituições políticas constituem superafetações de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro.” (ibidem, p. 219)
Síntese: o arcaico e o moderno
Arcaísmo e modernidade.
Talvez a chave para a compreensão do pensamento de Darcy Ribeiro resida na relação, muitas vezes conflituosa, entre estes dois pólos. O caráter de “povo novo” dos brasileiros – o fato de serem resultado da deculturação e transfiguração étnica de três matrizes distintas – os teria transformado em homens “tábula rasa”, prontos a absorver as forças renovadoras da Revolução Industrial.
As antigas bandeiras mamelucas que se difundiram por todo o território nacional terminaram por engendrar um povo de grande homogeneidade étnica, receptivo à mudança, aberto ao diálogo entre suas ilhas de “modernidade” e seus bolsões “atrasados”:
“Esse é o resultado fundamental do processo de deculturação das matrizes formadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano cultural com relação a seus ancestrais europeus, africanos e indígenas, o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal.” (ibidem, p. 249)
Se nossa origem e especificidade, portanto, nos colocaram na ante-sala da modernidade, quais as razões para o nosso atraso frente aos países centrais? Ou, retomando a pergunta inicial de seu livro: “por que o Brasil ainda não deu certo?”
“A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes.
Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança
Esse é o caso da propriedade fundiária, incompatível com a participação autônoma das massas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar as oportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à população.
É também o caso da industrialização recolonizadora, promovida por corporações internacionais atuando diretamente ou em associação com os capitais nacionais. Embora modernize a produção e permita a substituição das importações, apenas admite a formação de um empresariado gerencial, sem compromissos outros que não seja o lucro a remeter a seus patrões.
Estes se fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalho nacional com enormes contas de lucros e regalias. Seu efeito mais danoso é remeter para fora o excedente econômico que produzem, em lugar de aplicá-lo aqui. De fato, ele se multiplica é no estrangeiro.” (ibidem, p. 250)
“A mais grave dessas continuidades reside na oposição entre os interesses do patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povo brasileiro. Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio do poder institucional e do controle da máquina do Estado nas mãos da mesma classe dominante, que faz prevalecer uma ordenação social e legal resistente a qualquer processo generalizável a toda a população.
Ela é que regeu a economia colonial, altamente próspera para uma minoria, mas que condenava o povo à penúria. Ela é que deforma, agora, o próprio processo de industrialização, impedindo que desempenhe aqui o papel transformador que representou em outras sociedades.
Ainda é ela que, na defesa de seus interesses antinacionais e antipopulares, permite a implantação das empresas multinacionais, através das quais a civilização pós-industrial se põe em marcha como um mero processo de atualização histórica dos povos fracassados na história.” (ibidem, p. 251)
“Modernizada reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidade retrógrada, a sociedade brasileira não conforma um remanescente arcaico da civilização ocidental, cujos agentes lhe deram nascimento, mas um dos seus ‘proletariados externos’, conscritos para prover certas matérias-primas e para produzir lucros exportáveis.
Um proletariado externo atípico com respeito aos protagonistas históricos, assim designados por Toynbee (1959), porque não possui uma cultura original e porque sua própria classe dirigente é o agente de sua dominação externa.”
Em síntese:
“Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo.
Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ‘ninguendade’.
Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino.”
por Krishna Mendes Monteiro
fonte: Diálogo Diplomático
Veja também o documentário sobre o livro:
Nenhum comentário:
Postar um comentário