quinta-feira, 10 de abril de 2014

Ordem jurídica numa sociedade internacional descentralizada


No prefácio de "Direito Internacional Público" o ministro Francisco Rezek discorre sobre um tema basilar para qualquer início de estudos sobre DIP:  A ordem jurídica numa sociedade internacional descentralizada. 

O texto remete à inúmeras questões e relendo agora, resolvi transcrevê-lo, ipsis litteris, pois entendi ser impossível ser mais objetivo sobre o tema.








Ordem jurídica numa sociedade internacional descentralizada

Uma advertência deve ser feita a todo aquele que se inicia no estudo do direito internacional público. A sociedade internacional, ao contrário do que sucede com as comunidades nacionais organizadas sob a forma de Estados, é ainda hoje descentralizada, e o será provavelmente por muito tempo adiante de nossa época. 

Daí resulta que o estudo desta disciplina não ofereça a comodidade própria daquelas outras que compõem o direito interno, onde se encontra lugar fácil para a objetividade e para os valores absolutos. 

No plano interno, a autoridade superior e o braço forte do Estado garantem a vigência da ordem jurídica, subordinando compulsoriamente as proposições minoritárias à vontade da maioria, e fazendo valer, para todos, tanto o acervo legislativo quanto as situações e atos jurídicos que, mesmo no âmbito privado, se produzem na sua conformidade. 

No plano internacional não existe autoridade superior nem milícia permanente. Os Estados se organizam horizontalmente, e prontificam-se a proceder de acordo com normas jurídicas na exata medida em que estas tenham constituído objeto de seu consentimento. 

Não há representação, como no caso de parlamentos nacionais que se propõem exprimir a voz dos povos, nem prevalece o princípio majoritário. A vontade singular de um Estado soberano somente sucumbe para dar lugar ao primado de outras vontades reunidas quando aquele mesmo Estado tenha, antes, abonado a adoção de semelhante regra, qual sucede no quadro das organizações internacionais, a propósito de questões de importância secundária. 

Em direito interno as normas são hierarquizadas como se se inscrevessem, graficamente, numa pirâmide encabeçada pela lei fundamental. Não há hierarquia entre normas de direito internacional público, de sorte que só a análise política - de todo independente da lógica jurídica - faz ver um princípio geral, qual o da não-intervenção nos assuntos domésticos de certo Estado, como merecedor de maior zelo que um mero dispositivo contábil inscrito em tratado bilateral de comércio ou tarifas. 

As relações entre o Estado e os indivíduos ou empresas fazem com que toda ordem jurídica interna seja marcada pela idéia de subordinação. Esse quadro não encontra paralelo na ordem internacional, onde a coordenação é o princípio que preside a convivência organizada de tantas soberanias.  

Dentro da ordem jurídica estatal, somos todos jurisdicionáveis, dessa contingência não escapando nem mesmo pessoas jurídicas de direito público interno. Quando alguém se dirige ao foro para demandar contra nós, em matéria civil ou criminal, não se nos pergunta vestibularmente se aceitamos ou recusamos a jurisdição local: é imperioso aceitá-la, e a opção pelo silêncio só nos poderá trazer maior transtorno. 

Já o Estado soberano, o plano internacional, não é originalmente jurisdicionável perante corte alguma. Sua aquiescência, e só ela, convalida a autoridade de um foro judiciário ou arbitral, de modo que a sentença resulte obrigatória e que seu eventual descumprimento configure um ato ilícito. 

Frente aos atos ilícitos em que o Estado acaso incorra, não é exato supor que inexista no direito internacional um sistema de sanções, em razão da falta de autoridade central provida de força física. Tudo quanto é certo é que, neste domínio, o sistema de sanções é ainda mais precário e deficiente que no interior da maioria dos países. 

A igualdade soberana entre todos os Estados é um postulado jurídico que ombreia, segundo notória reflexão de Paul Reuter, com sua desigualdade de fato: dificilmente se poderiam aplicar hoje, sanções a qualquer daqueles cinco Estados que detêm o poder de veto no Conselho de Segurança na ONU.            

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