sexta-feira, 20 de junho de 2014

Gilberto Freyre em tempos de futebol


Nestes tempos de Copa do Mundo fica difícil permanecer focado nos estudos e imune aos apelos de tantos jogos bacanas na TV. 

Decidi diminuir um pouco o ritmo nesses dias, mas sem me desligar completamente, procurando estudar itens menores dando espaço tanto para estudo quanto para acompanhar os jogos. 

Encontrei um texto interessante que junta História e futebol e resolvi publicar. No mínimo para relaxar um pouco sem sentir a consciência muito pesada. 

Grande abraço e boa leitura !

No tempo do futebol-arte

Entusiasta da miscigenação, Gilberto Freyre ajudou a criar a ideia de um modo tipicamente brasileiro de dar espetáculo com a bola nos pés

Bernardo Buarque de Hollanda
1/6/2014
A interpretação da identidade brasileira a partir da mestiçagem rendeu à obra de Gilberto
Freyre (1900-1987) o reconhecimento e a controvérsia que ela merece. Seria de estranhar que um pensador dedicado a esses temas não incluísse em suas análises os significados do futebol para o país. E ele incluiu.
No clássico Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933 e dedicado à formação da vida íntima da família patriarcal brasileira durante a Colônia, Freyre já menciona jogos com bola praticados por índios. 
Três anos depois, dá sequência às suas teses em Sobrados & Mocambos, e não deixa de pontuar os esportes como vias de acesso do mulato à ascensão social. O emergente esportista do final do século XIX situa-se ao lado do eminente bacharel, com diploma universitário. 
Em suas palavras: “Observa-se, entretanto, nas gerações mais novas de brasileiros, gerações menos atingidas por aquela diferença de garantias sociais, a ascensão do mulato não só mais claro, como mais escuro, entre os atletas, os nadadores, os jogadores de futebol, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços”.
Neste mesmo livro, baseia-se no contraponto mitológico entre Apolo e Dioniso, divindades gregas, para acentuar: “O pé caracteristicamente brasileiro pode-se dizer que continua, em largos trechos do país, o pé pequeno que o mulato tem certo garbo em contrastar com o grandalhão, do português, do inglês, do negro, do alemão. O pé ágil, mas delicado do capoeira, do dançarino de samba, do jogador de futebolpela técnica brasileira antes de dança dionisíaca do que de jogo britanicamente apolíneo”.
Dois dias depois de o Brasil ter sido eliminado da Copa do Mundo de 1938 pela Itália, Gilberto Freyre publicou um artigo no jornal Diário de Pernambuco, ainda tomado pelo calor da disputa. É neste texto que Freyre cunha o termo “futebol mulato” e se apropria do esporte para respaldar suas teorias sobre os efeitos positivos da mescla racial e da interpenetração cultural no Brasil.
A ideia de um “futebol-arte” brasileiro em oposição ao “futebol-científico” europeu é defendida por Freyre no livroSociologia, de 1940.Era uma estratégia astuta do sociólogo, pois o futebol do país ainda não havia se consagrado mundialmente. 
A nação se ressentia de certa inferioridade em face do futebol praticado na Argentina, no Uruguai e em países da Europa, como Itália e Inglaterra. Ao privilegiar a exibição em detrimento da simples competição, Gilberto Freyre minimizava a escassez de triunfos e capitalizava os aspectos positivos que lhe interessavam ressaltar no futebol brasileiro – diferenciando-o do praticado por outras nações, vizinhas ou distantes.
Quatro anos mais tarde, em Interpretação do Brasil, livro decorrente de um conjunto de conferências pronunciadas nos Estados Unidos, ele volta a falar do bailado e do meneio dos corpos no modo de jogar do brasileiro. 
E endossa a tese recorrendo a escritores estrangeiros: “Depois que publiquei minhas primeiras notas sobre esses dois assuntos – as maneiras regionais de dançar e de jogar futebol, o futebol ainda como uma dança com alguma coisa de africano – li excelente página de Waldo Frank em que ele acha que o tango é uma ‘dança-música escultural’; e ao mesmo tempo diz que, observando um grupo de brasileiros a jogar futebol, notou que jogavam procurando levar a bola para o gol como se executassem ‘a linha melódica de um samba’”.
Em 1947 surge o famoso prefácio de Freyre ao livro O negro no futebol brasileiro, do jornalista esportivo Mario Filho. A apresentação busca realçar a vitória da assimilação do futebol no Brasil e a correspondente ascensão social do negro por meio deste esporte. 
Tal metamorfose teria produzido um denominador comum para fenômenos distintos: os esportes (civilizados, urbanos e modernos) e os jogos (bárbaros, rurais e tradicionais): 
“Isso quando essas energias ou esses impulsos, em vez de assim se sublimarem ou de se satisfazerem com os esportes ou os quase-esportes rurais dos dias de festa, ou dos dias comuns, dominantes do Brasil patriarcal -as cavalhadas, as corridas atrás de bois, as caçadas, as pescas, as noites inteiras de samba ou de dança extenuantes, as largas caminhadas pelos sertões, a caça aos índios ou aos negros fugidos, a fuga dos negros aos feitores ou à melancolia da rotina agrária dos engenhos e fazendas -não se degradaram moral ou socialmente em proezas como as do cangaço ou nos rabos-de-arraia da capoeiragem, célebres na história da sociedade brasileira. Espécies de esportes inteiramente irracionais”. 
Nesse prefácio, Freyre também volta a se utilizar da comparação mitológica entre Apolo e Dioniso para analisar o futebol brasileiro. Ocupa o lugar de enquadramento do irracional – as forças, as energias e os impulsos dionisíacos – junto ao moderno e ao civilizado – representado pelas forças de equilíbrio apolíneas.
Suas referências ao tema se estendem até 1974, quando, em face do desempenho defensivo da seleção na Copa da Alemanha, o autor publica artigo intitulado “Futebol desbrasileirado”, também no Diário de Pernambuco
A 30 de junho daquele ano, no mesmo dia em que o Brasil empata em 0 a 0 contra a Argentina, o autor faz críticas frontais à mudança do estilo de jogo e à prevalência da força física na equipe nacional.
Vistas em ordem cronológica, as observações de Freyre sobre os futebolistas-estilistas da Seleção evidenciam as etapas de construção de um ideário coletivo. 
Ao erigir em ícone os termos “futebol mulato” e “futebol arte”, a linguagem freyriana contribuiu para cristalizar uma autoimagem, hoje tão arraigada e compartilhada pelos brasileiros como uma espécie de segunda natureza.

Bernardo Buarque de Hollanda é professor da Escola de Ciências Sociais da FGV e organizador dos livros Hooliganismo e Copa de 2014 (ano de publicação) e A voz da arquibancada (ano de publicação), (Coleção “Visão de Campo”, Editora 7letras).

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