Dez teses sobre a ascensão da extrema direita europeia
O novo fascismo espreita o Velho Continente
O resultado das eleições para o Parlamento Europeu, no fim de maio, registrou na prática o fortalecimento dos partidos de extrema direita no continente. Para sociólogo, discurso com que esquerda explica o crescimento do fascismo pela via da crise econômica reduz fenômeno e deixa de lado suas raízes históricas.
1. As eleições europeias confirmaram uma tendência observada já há alguns anos na maior parte dos países do continente: o crescimento espetacular da extrema direita.
Esse é um fenômeno sem precedente desde os anos 1930. Em muitos países, essa corrente obtinha entre 10 e 20%. Hoje, em três países (França, Inglaterra e Dinamarca), ela já atinge entre 25 e 30% dos votos. Na verdade, sua influência é mais vasta do que seu eleitorado: ela contamina com suas ideias a direita "clássica" e até mesmo uma parte da esquerda social-liberal.
O caso francês é o mais grave; o avanço da Frente Nacional ultrapassa todas as previsões, mesmo as mais pessimistas. Como escreveu o site Mediapart em um editorial recente: "São cinco para meia-noite".
2. Essa extrema direita é muito diversa, podendo-se observar uma vasta gama que vai desde os partidos abertamente neonazistas -- como o Aurora Dourada grego -- até as forças burguesas perfeitamente integradas no jogo político institucional, como a suíça UDC (União Democrática de Centro).
O que eles têm em comum é o nacionalismo excessivo, a xenofobia, o racismo, o ódio contra imigrantes -- principalmente "extraeuropeus" -- e contra ciganos (o mais velho povo do continente), a islamofobia e o anticomunismo. A isso pode-se acrescentar, em muitos casos, o antissemitismo, a homofobia, a misoginia, o autoritarismo, o desprezo pela democracia e a eurofobia.
Quanto a outras questões -- por exemplo, ser a favor ou contra o neoliberalismo ou a laicidade -- a corrente se mostra mais dividida.
3. Seria um erro acreditar que o fascismo e o antifascismo são fenômenos do passado.
É evidente que hoje não se encontram mais partidos de massa fascistas comparáveis ao NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães) dos anos 1930, mas já nessa época o fascismo não se resumia a um único modelo: o franquismo espanhol e o salazarismo português eram bem diferentes do modelo italiano ou do alemão.
Parte importante da extrema direita europeia hoje tem matriz diretamente fascista e/ou neonazista: é o caso do grego Aurora Dourada, do húngaro Jobbik, dos ucranianos Svoboda e Pravy Sektor etc.; mas isso vale também, sob outro aspecto, para a Frente Nacional, o FPÖ (Partido da Liberdade Austríaca), o belga Vlaams Belang (Interesse Flamengo) e outros, cujos quadros fundadores tiveram ligações estreitas com o fascismo histórico e com as forças de colaboração com o Terceiro Reich.
Em outros países -- Holanda, Suíça, Inglaterra, Dinamarca -- os partidos de extrema direita não têm origem fascista, mas partilham com os primeiros o racismo, a xenofobia e a islamofobia.
Um dos argumentos que demonstrariam que a extrema direita mudou e não teria mais muito a ver com o fascismo é sua aceitação da democracia parlamentar e da via eleitoral para chegar ao poder.
Lembremos que um certo Adolf Hitler chegou à Chancelaria por uma votação legal do Reich-stag (Parlamento alemão) e que o marechal Pétain foi eleito chefe de Estado pelo Parlamento francês. Se a Frente Nacional chegasse ao poder por meio de eleições -- uma hipótese que infelizmente não se pode descartar -- o que restaria da democracia na França?
4. A crise econômica que castiga a Europa desde 2008 favoreceu, portanto, de maneira predominante (com exceção do caso da Grécia), mais a extrema direita do que a esquerda radical.
A proporção entre as duas forças está totalmente desequilibrada, contrariamente à situação europeia dos anos 1930, que via, em diversos países, um crescimento paralelo do fascismo e da esquerda antifascista.
A extrema direita atual, sem dúvida, se aproveitou da crise, mas isso não explica tudo: na Espanha e em Portugal, dois dos países mais atingidos pela crise, a extrema direita continua marginal. E na Grécia, ainda que o Aurora Dourada tenha crescido exponencialmente, segue retumbantemente derrotado pelo Syriza, coalizão da esquerda radical. Na Suíça e na Áustria, países poupados pela crise, a extrema direita racista ultrapassa com frequência os 20%.
É preciso, então, evitar as explicações economicistas que a esquerda vem propondo.
5. Fatores históricos têm sem dúvida o seu papel: uma grande e antiga tradição antissemita em certos países; a persistência de correntes colaboracionistas desde a Segunda Guerra Mundial; a cultura colonial, que impregna as atitudes e os comportamentos muito depois da descolonização -- não somente nos antigos impérios, mas em quase todos os países da Europa.
Todos esses fatores estão presentes na França e contribuem para explicar o sucesso do lepenismo.
6. O conceito de "populismo", empregado por alguns cientistas políticos, pela mídia e mesmo por uma parte da esquerda, não é de modo algum capaz de dar conta do fenômeno em questão, servindo apenas a semear a confusão.
Se na América Latina, desde os anos 1930 até os 1960, o termo correspondia a algo relativamente preciso --o varguismo, o peronismo etc.--, seu uso na Europa a partir dos anos 1990 é cada vez mais vago e impreciso.
O populismo é definido como "uma posição política que está do lado do povo contra as elites", o que é válido para quase qualquer movimento ou partido político.
Esse pseudoconceito, aplicado aos partidos de extrema direita, leva, voluntariamente ou não, a legitimá-los, a torná-los mais aceitáveis, e até mesmo simpáticos -- quem não é a favor do povo contra as elites? --, evitando cuidadosamente os termos que contrariam: racismo, xenofobia, fascismo, extrema direita.
"Populismo" também é utilizado de maneira deliberadamente mistificadora por ideólogos neoliberais para amalgamar a extrema direita e a esquerda radical, caracterizadas como "populismo de direita" e "populismo de esquerda", opondo-as aos políticos liberais, à Europa etc.
7. A esquerda, todas as tendências reunidas -- com poucas exceções --, tem subestimado cruelmente o perigo. Ela não viu chegar a "vague brune" (1) e, por isso, não achou necessário tomar a iniciativa de uma mobilização antifascista.
Para algumas correntes da esquerda, a extrema direita é apenas um subproduto da crise e do desemprego, e é contra essas causas que é preciso lutar, e não contra o fenômeno fascista em si.
Esses argumentos tipicamente economicistas desarmaram a esquerda diante da ofensiva ideológica racista, xenófoba e nacionalista da extrema direita.
8. Nenhum grupo social está imune à "peste brune".
As ideias da extrema direita, em particular o racismo, contaminaram um bom contingente, não só de pequenos-burgueses e desempregados como também da classe trabalhadora e da juventude.
No caso francês, isso é particularmente chocante. Essas ideias não têm nenhuma ligação com a realidade da imigração: o índice de votação na Frente Nacional, por exemplo, é especialmente alto em algumas regiões rurais em que nunca se viu um só imigrante.
E os imigrantes ciganos, que foram recentemente objeto de uma onda de histeria racista bastante impressionante -- com a indulgente participação do então ministro "socialista" do Interior, Manuel Valls --, são menos de 20 mil em todo o território francês.
9. Outra análise "clássica" da esquerda sobre o fascismo é a que o explica como um instrumento do grande capital para esmagar a revolução e o movimento trabalhador.
Bom, como hoje o movimento trabalhador está muito enfraquecido e o perigo revolucionário inexiste, o grande capital não tem interesse em sustentar movimentos de extrema direita, então a ameaça de uma ofensiva "brune" não existe.
Trata-se, mais uma vez, de uma visão economicista, que não abarca a autonomia própria aos fenômenos políticos -- os eleitores podem escolher um partido que não tem a simpatia da grande burguesia -- e que parece ignorar que o grande capital pode se acomodar em todos os tipos de regimes políticos, sem muitas preocupações.
10. Não há receita mágica para combater a extrema direita.
É preciso se inspirar, mantendo certa distância crítica, nas tradições antifascistas do passado; mas é preciso também saber inovar para responder às formas atuais do fenômeno.
Há que saber combinar iniciativas locais com movimentos sociopolíticos e culturais individuais solidamente organizados e estruturados, em escala nacional e continental.
É possível chegar a uma unidade pontual de todo o espectro "republicano", mas um movimento antifascista organizado só será eficaz e confiável se impelido por forças externas ao consenso neoliberal dominante.
Trata-se de uma luta que não pode se limitar às fronteiras de um país, mas deve se organizar em escala europeia. O combate ao racismo, e a solidariedade a suas vítimas, é um dos componentes essenciais dessa resistência.
Nota:
1. "Vague brune", onda marrom, é como vem sendo chamada, na França, a expansão fascista. A expressão deriva de "peste brune", praga marrom, nome dado pelos franceses ao nazismo durante a Segunda Guerra, em referência à cor do uniforme dos soldados do Reich.
fonte: Folha SP
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