A obra de Celso Furtado faz parte de uma tradição mais ampla de trabalhos sobre o Brasil e a América Latina. Seu esforço é principalmente o de captar a especificidade de nossas sociedades, explicando como são diferentes dos casos "clássicos", a saber, europeus e norte-americano.
Mas dentro do quadro maior, de estudos sobre o Brasil e a América Latina, Furtado se destaca de outros autores por ter sido um dos poucos a intervir diretamente na realidade, o que tanto seus interesses como experiência de vida permitiram.
É a partir dessas referências que se pode entender as realizações do autor de A economia colonial do Brasil nos séculos XVI e XVII em variados domínios.
O mais interessante é como as próprias circunstâncias de Celso Furtado permitiram, ao nível do pensamento, uma notável articulação entre as grandes correntes de interpretação da experiência brasileira e a atividade no interior do aparelho de Estado e de organismos internacionais, tornou possível, no plano da prática, a tradução dessas idéias em ação.
Desde cedo, o autoditadismo permitirá a Furtado escapar à rigidez acadêmica, combinando, de forma rica, algumas das maiores influências do pensamento brasileiro: o positivismo, o marxismo e a antropologia norte-americana.
Fez bom uso de cada uma dessas tradições intelectuais, selecionando alguns de seus aspectos mais relevantes: a crença no conhecimento científico, do positivismo; a consciência da historicidade dos fenômenos econômicos e sociais, do marxismo; a atenção, desde a leitura de Gilberto Freyre, à cultura, da antropologia. Esse ecletismo "bem temperado" abre caminho para uma das mais sofisticadas formulações teóricas elaboradas a partir da América Latina.
Entende-se o pensamento de Celso Furtado sobretudo a partir das formulações da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual, desde o "Manifesto latino-americano" (1949), elaborado pelo seu primeiro diretor, o argentino Raúl Prebisch, chamara a atenção para o "falso senso de universalidade" da teoria econômica elaborada nos países desenvolvidos.
O progresso técnico não se difundiria de maneira linear no "centro" e na "periferia" da economia mundial. Ao contrário do que sugeria a tese ricardiana sobre as "vantagens comparativas" provindas da divisão internacional do trabalho, haveria uma "deterioração dos termos de intercâmbio", entre as matérias-primas, produzidas na periferia, e as manufaturas, originárias do centro.
Ou seja, o desenvolvimento não seria um processo único e inevitável, mas desigual (e não combinado).
A contribuição particular de Celso Furtado ao que ficou conhecido como teoria estruturalista da Cepal foi historicizá-la, mostrando como foi estabelecida, ao longo do tempo, a relação entre colônias e metrópoles, países desenvolvidos e subdesenvolvidos, centro e periferia.
Talvez mais surpreendente, sua especial sensibilidade para a influência da cultura chamou a atenção para problemas, como os padrões de consumo conspícuos das classes dominantes latino-americanas, fator de perpetuação do subdesenvolvimento.
Tudo isso é conhecido. Mais interessante é perceber como temas, problemas e mesmo a linguagem de nosso autor se estabelecem para além de seu contexto intelectual imediato, a Cepal, em confronto com autores latino-americanos e principalmente brasileiros.
Se é verdade que Furtado não cita, em profusão, em Formação econômica do Brasil e em seus escritos posteriores, os "novos clássicos" da modernidade brasileira, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, o mesmo não ocorre com sua tese de doutorado.
Uma das possibilidades oferecidas pela leitura de Economia colonial do Brasil nos séculos XVI e XVII é precisamente permitir iniciar o desvelamento do diálogo implícito de seu autor com o pensamento social brasileiro.
A obra de Furtado faz parte, em particular, de um "quase" gênero brasileiro: os livros sobre a formação de nossa sociedade. Não por acaso, como nota Paulo Arantes, boa parte dessa literatura ostenta a palavra "formação" no título.
Para ficar apenas em poucos exemplos significativos: Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, e Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido. Além desses livros, Casa grande e senzala (1932), de Gilberto Freyre, ostenta na sua primeira edição o subtítulo "Formação da família patriarcal brasileira" e Os donos do poder (1959), de Raymundo Faoro, traz a explicação "Formação do patronato brasileiro".
Por fim, a escolha do nome Raízes do Brasil indica que a mesma ordem de problemas inspirava Sérgio Buarque de Holanda quando escreveu seu livro, em 1933.
A relação de Celso Furtado com tais livros e autores é diferenciada. Mas apesar de esses livros trazerem um certo "ar de família", dado pela preocupação comum com o estabelecimento de um quadro social, econômico, político e cultural mais autônomo no Brasil, Raízes do Brasil, Formação do Brasil contemporâneo, Formação econômica do Brasil e Formação da literatura brasileira compartilham uma postura mais normativa que acaba por afastá-los dos outros livros.
Não se tem fundamentalmente uma avaliação negativa da história, como em Os donos do poder, onde se aponta para a origem do "estamento burocrático" que, desde Dom João VI, usurparia a soberania, nem se olha nostalgicamente para o passado, como em Casa grande e senzala, em que é recordado, em tom de pesar, o período de apogeu da família patriarcal brasileira.
Ao contrário, Holanda, Prado Jr., Furtado e Candido, além de assinalarem para como o Estado, a economia e a literatura brasileira começam a ser estabelecidos, querem efetivamente que se crie no Brasil uma política autônoma, um mercado interno que supere o externo e uma literatura consolidada. Em suma, desejam que se forme definitivamente uma nação no Brasil.
As coincidências entre Celso Furtado e Caio Prado Jr. são particularmente numerosas: a preocupação com a economia, o relevo atribuído ao passado colonial, o programa político implícito etc. Os dois são autores que chamam a atenção sobretudo para a ligação, desde a colônia, entre a economia brasileira e a mundial. Juntos com Roberto Simonsen, podem ser considerados os inauguradores de uma linha de interpretação do Brasil.
Antes, o que prevalecia era a atenção aos fatores internos à sociedade brasileira, em especial, aqueles formalmente similares ao feudalismo europeu. Mesmo hoje em dia, há aqueles, como os defensores da tese do "escravismo colonial", que acusam nossos autores de "circulacionismo" e outros pecados aparentados.
Os defensores da "tese feudal", estejam eles identificados com a historiografia mais tradicional ou com a interpretação da III Internacional sobre os "países coloniais, semicoloniais e dependentes", assim como os historiadores do escravismo colonial e Gilberto Freyre, têm em comum a postura de privilegiar os fatores internos à colônia.
Já Caio Prado Jr. e Celso Furtado chamam principalmente a atenção para a relação do Brasil (desde o início da sua história) com a economia mundial.
As implicações de cada tipo de enfoque são óbvias: ao privilegiar-se o próprio desenvolvimento histórico pode-se perder de vista muitas de suas conexões com fatores externos, ao passo que a análise preocupada sobretudo com condicionantes internacionais possivelmente será incapaz de apontar para o que é único à experiência estudada.
Mas, mesmo que o ideal seja balancear a análise, prestando atenção tanto às influências internas como externas, o fato é que, em casos de passado colonial, o peso de determinantes que não se controla é maior.
Assim como Caio Prado Jr., Furtado entende a colonização da América no quadro maior da expansão ultramarina européia. Ressalta que passamos a fazer parte, desde então, da economia reprodutiva européia. Nesse quadro, antes nas ilhas do Atlântico e depois no Brasil, Portugal teve papel pioneiro, não apenas extrativo, mas produzindo bens, como o açúcar, demandados pelo mercado europeu.
Num plano latino-americano mais amplo, o argentino Sergio Bagú, leitor de Caio Prado Jr., Roberto Simonsen e Gilberto Freyre, é outro a questionar, já em 1949, o pretenso passado feudal da região. Bagú chega a considerar que, além de complementar a economia européia, as possessões de Espanha e Portugal na América constituiriam o que chama, pioneiramente, de um capitalismo colonial.
Realça, em especial, o papel do colonialismo e do tráfico de escravos na acumulação primitiva de capital, ocorrida no período de transição entre o feudalismo e o capitalismo industrial.
Mas além de localizar a história brasileira num quadro maior, Furtado, assim como Caio Prado Jr., se utiliza dos estudos do francês Paul Leroy-Beaulieu sobre a colonização moderna, para sugerir possibilidades diferentes de desenvolvimento histórico.
Para tanto, fazem uso da comparação entre colônia de povoamento, que prevaleceria na região temperada do continente americano, e colônias de exploração, dominantes na região tropical.
É particularmente interessante a análise de Furtado, que demonstra como o êxito inicial do segundo tipo de colônia, desde cedo bem integrada ao mercado europeu, dificultou a superação da situação colonial e posteriormente subdesenvolvida, ao passo que as dificuldades, num primeiro momento, das colônias de povoamento, menos integradas à economia mundial, com o tempo lhes trouxeram possibilidades bloqueadas na zona tropical.
Ou melhor, o desenvolvimento das colônias de povoamento, de dentro para fora, privilegiando o mercado interno (similar, portanto, à Europa), possibilitou o surgimento de uma camada de pequenos proprietários e de grupos dominantes menos dependentes da metrópole.
Também a idéia de Celso Furtado, segundo a qual, junto à economia açucareira do litoral nordestino - setor de alta produtividade voltado à produção para o mercado externo - articular-se-ia a pecuária, realizada no interior, de baixa produtividade e voltada para o mercado interno, não é muito diferente da discussão realizada por Caio Prado Jr. sobre a presença de um setor orgânico e inorgânico na colônia.
O primeiro produziria para o mercado externo, utilizando o trabalho escravo em grandes unidades, enquanto fariam parte do setor inorgânico "as atividades inclassificáveis ou de difícil classificação" subordinadas, de alguma forma, ao setor orgânico.
Diferenças mais substantivas entre Prado Jr. e Furtado aparecem na avaliação do significado da industrialização. Enquanto o primeiro não dá maior importância ao fenômeno, já que ressalta sua dependência de capitais estrangeiros e sua incapacidade de mudar a orientação da economia desde a colônia, o segundo sublinha seu sentido transformador.
O principal estímulo para a industrialização ter-se-ia dado mediante mesmo a políticas keynesianas avant la lettre, já que a política de defesa dos preços do café, depois da crise de 1929, mantendo os níveis de renda interna e somado a crise de divisas fortes, impedia a importação de manufaturas.
Por fim, os programas políticos propostos por Prado Jr. e Furtado não são muito diferentes. Ambos propõem basicamente o estabelecimento definitivo de uma nação no Brasil, em que tem central importância a produção que privilegie o mercado interno e não mais o externo.
Os protagonistas do processo de constituição da nação para o historiador marxista e o economista keynesiano são, entretanto, diferentes: para o primeiro, os trabalhadores do campo e da cidade, para o segundo, uma coalizão mais ampla identificada, de certa forma, com os grupos que sustentaram o populismo.
Entre esses dois autores há, ademais, uma outra diferença básica: apesar de ambos terem como horizonte a intervenção na realidade, o economista paraibano foi muito mais efetivo em suas intenções do que o historiador paulista.
Até porque uma coisa era ser um funcionário do governo brasileiro ou de agências internacionais e outra um militante comunista que, além de tudo, encontrava-se isolado no seu partido devido às teses que defendia.
Mas o mais importante é que, a partir de sua situação profissional, Celso Furtado contribuiu, como poucos, para mudar a postura em relação ao Estado no Brasil. Até ele e sua geração, praticamente, o Estado era domínio do pensamento autoritário.
Autores como Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral argumentavam que caberia ao Estado organizar a sociedade. Com o regime autoritário do Estado Novo implantado em 1937, esses autores vieram a ter particular influência. A própria trajetória de Furtado foi impulsionada pelas novas condições do país, em que o planejamento e a ação do Estado na economia passaram a ter papel central.
Mas aquele cujo primeiro emprego foi o de funcionário do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) (criado durante o período estado-novista), pôde, nas novas circunstâncias políticas possibilitadas pela redemocratização de 1945, contribuir para dar um novo rumo ao Estado brasileiro.
Ele se expressou, por exemplo, na Operação Nordeste e na criação da Superintendência para o Nordeste (Sudene), do qual foi o primeiro diretor.
Nesse quadro de orientação mais democrática do Estado, Furtado e outros foram grandemente influenciados por Karl Mannheim. É bem possível que esses homens guardassem de si mesmos uma imagem de técnicos situados acima dos grupos que compõem a sociedade.
Conseqüentemente, nunca se perguntaram quem planejaria o trabalho dos planificadores, ou, mais simplesmente, quem educaria os educadores.
Em vista disso, formou-se em torno das teses da Cepal, de Furtado e de outros, como nota Francisco de Oliveira, uma verdadeira ideologia, na qual também seus autores acreditavam.
O que não deixa de ser bastante natural, já que as ideologias, de maneira geral, correspondem às aparências e, neste caso em particular, devido, em grande parte, a ela, o Brasil e a América Latina estiveram envolvidos, como nunca, na superação do subdesenvolvimento legado pelo passado colonial.
Nos últimos anos, preferiu-se abrir mão desse esforço, o que levou aos resultados que conhecemos.
Hoje, quando novos ventos podem começar a soprar, esperamos, para parafrasear Celso Furtado, que a construção seja retomada de onde foi interrompida.
Bernardo Ricúpero (artigo publicado no posfácio da tese de doutorado de Celso Furtado)
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