Dawisson Belém Lopes
Estado de São Paulo
2 março 2017
Em dias de corrida sucessória pela chefia de um dos ministérios mais antigos e complexos da República Federativa do Brasil, cabe fazer uma ponderação de feitio diagnóstico e outra de natureza prescritiva.
O desligamento de José Serra, primeiro chanceler da era Temer, poderia ter passado despercebido, dada a baixa densidade da gestão de política exterior durante os nove meses em que o senador paulista esteve no cargo.
Não obstante, arguo que não se deve tomar a queda do ministro pelo valor de face, mas pelo que carrega de conteúdo implícito. Tratou-se, isto sim, da ponta de um grande e profundo iceberg.
O estranhamento entre Serra e o Itamaraty, patente desde o princípio, é também metáfora para o desencaixe entre política externa e diplomacia no Brasil de hoje. Para o país recuperar a expressão internacional perdida, deverá ter clareza de que se trata de categorias distintas: a segunda corresponde a um meio para o exercício da primeira.
Trinta anos atrás, ao ser eleito presidente da República, Tancredo Neves dizia que a política externa conduzida pelo Itamaraty era uma “unanimidade nacional”. Hoje, o mantra tancredista dificilmente permaneceria de pé.
Se é verdade que o serviço exterior brasileiro ainda se destaca entre os congêneres ao redor do mundo por sua qualidade, o mesmo não se poderá dizer da capacidade do Ministério de Relações Exteriores de planejar a ação externa de médio e longo prazo.
Há muito, a principal burocracia diplomática brasileira perde capacidade de formulação. Em que pese a problemas reportados na sua organização interna, avultam, sobretudo, os constrangimentos políticos à sua ação.
Desde o regresso à democracia, a cena vem se alterando. Primeiro, porque há novíssimos temas na arena internacional. Em segundo lugar, pois não há unanimidade possível – aparentemente, nem sequer um consenso – entre os agentes com interesses manifestos na política externa.
Em um ambiente doméstico de multiplicação de “stakeholders” e polarização político-partidária elevada, o Itamaraty carece de lastro para liderar.
Esse não é um fenômeno isolado, diga-se. Nos EUA, o Departamento de Estado, embora dono da máquina diplomática e consular, não é o mentor da política exterior. Ele divide funções com um cipoal de agências – USAID, USTr, Departamento de Defesa, CIA, Pentágono, Forças Armadas etc. – e, naturalmente, com a Casa Branca e o Capitólio.
Por outro lado, é incomum que grandes potências mundiais mantenham diplomatas de carreira, com baixo apelo eleitoral, na posição de ministro de exterior. Vide as trajetórias contemporâneas de França, Reino Unido, Alemanha, Índia, Japão e EUA.
Parece importante, portanto, começarmos a nos preparar para uma política externa pós-diplomática. O Itamaraty, sempre um bom provedor de quadros para o Estado, continuará a sê-lo, ainda que sua competência deva circunscrever-se, cada vez mais, à implementação da política pública.
Outra hipótese é conceber o Ministério do Exterior como articulador entre as diferentes agências governamentais e posições sociais. Foi o caminho seguido, em larga medida, pelos legendários Foreign Office britânico e Quai d’Orsay francês.
Uma coisa é certa: se esse descompasso entre meios e fins não for logo resolvido, a vida política e o portfólio de realizações do próximo chanceler brasileiro não deverão superar em muito a média dos quatro anteriores.
Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada da UFMG e pesquisador do CNPq, é o autor de “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).
fonte: Estadão Política